Título: Governo deveria alterar seu perfil de gastos
Autor: Dantas, Cláudia
Fonte: Gazeta Mercantil, 01/12/2008, Nacional, p. A7

Rio de Janeiro, 1 de Dezembro de 2008 - O tamanho do rombo financeiro que afetou as maiores economias do mundo supera a casa dos US$ 600 trilhões, dez vezes mais que o PIB mundial, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI). Diante deste cenário, o presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Marcio Pochmann, avalia que "vivemos uma crise sistêmica", em que o caminho não reside só na discussão da regulação financeira. É preciso recriar uma nova ordem mundial, repensar o padrão de consumo, de expansão e desenvolvimento mundial, sem esquecer do aspecto ambiental.

Para o presidente do Ipea, a superação da crise dependerá de decisões políticas, e que 2009 será um grande teste para o governo Lula. Com a desaceleração econômica que se projeta para os próximos anos, , "empresas reduzirão investimentos, famílias conterão o consumo". Por este motivo, Pochmann considera fundamental mudar a composição do gasto brasileiro, reduzir a taxa Selic e o desperdício com o pagamento de juros. Desta forma, haverá mais recursos disponíveis para mantér o nível de atividade econômica.

Gazeta Mercantil - A crise mundial atingirá o Brasil em 2009?

Todos os países serão afetados. Uns em maior e outros em menor medida, dependendo da posição relativa de cada país. No caso do Brasil, o país está em condições muito melhores do que à época da crise de 99, por exemplo. Mas a recessão atual não está internalizada, ocorre no epicentro do capitalismo e uma parte dela é desconhecida. São aplicações em derivativos e demais operações securitizadas que não eram registradas. Não há autoridade pública no mundo que conheça, de forma precisa, os fundamentos de manifestação dessa crise. É bem diferente das crises de 1929, 1984 ou 1987 pela manifestação da economia real. Essa recessão atual ainda não se manifestou na totalidade, e não sabemos o tamanho dela, porque ocorre à sombra do sistema financeiro.

Gazeta Mercantil - Qual é a dimensão desta crise?

É difícil fazer um julgamento preciso, mas trabalhamos com a hipótese de que é uma crise sistêmica, que começou do ponto de vista do crédito imobiliário, transformou-se em uma crise financeira, atingindo em cheio os bancos, até chegar à economia real, no setor produtivo. Possivelmente trará conseqüências para a sociedade e, sobretudo, efeitos políticos. No próximo ano, o tema da crise se transformará em um dos elementos principais da agenda política do Brasil e do mundo. O assunto será um elemento novo na decisão de 2010.

Gazeta Mercantil - Nesse contexto, como o senhor avalia a política monetária conduzida pelo Banco Central, uma vez que o Brasil tem uma das taxas de juros mais altas do mundo?

Não devemos ter uma visão estreita e isolar a condução do governo especificamente à política monetária e fiscal. São elementos importantes, mas o governo é um conjunto de ações que nem sempre são convergentes. Muitas vezes são até contraditórias. No âmbito geral, a ação do governo me parece positiva, na medida em que os indicadores existentes apontavam para um movimento de expansão da atividade produtiva, em bases sustentadas, a partir de investimentos públicos e privados.

Gazeta Mercantil - Quais foram os efeitos deste crescimento?

O alargamento da produção brasileira veio acompanhado de uma melhora do ponto de vista distributivo, seja na distribuição pessoal da renda, seja na ampliação da participação dos trabalhadores na renda nacional, depois de um longo período de crescimento econômico reduzido nos anos 90. A perspectiva nos parecia favorável, mas é claro que temos contradições no interior do conjunto da política governamental, e uma delas - e não é a única - se dava justamente pelo tema monetário e fiscal. Mas a questão é que há um elemento novo que impõe uma maior radicalidade na postura governamental e, possivelmente, isso exigirá por parte do presidente Lula uma definição mais clara em relação a contradição entre política monetária e fiscal.

Gazeta Mercantil - O senhor considera que é o momento de reduzir a taxa de juros?

O Brasil ainda está limitado ao debate em torno do combate à inflação. O ano de 2008 vai encerrar-se com dois surtos de inflação originados internamente. Um deles, no início do ano, ocorreu por causa de uma elevação do preço das commodities, e isso fez com que o Banco Central subisse os juros. O outro surto inflacionário decorre da maxidesvalorização do real, que certamente traz impactos ao setor produtivo, dependente de insumos importados, e mesmo na formação de preços de cotação internacional. Avalio que pouco adianta elevar a taxa de juros, porque não se trata de uma inflação de demanda, de um consumo exacerbado. Novamente, é uma inflação associada a um choque externo, e para o qual o comportamento da taxa de juros é, para não dizer nulo, residual.

Gazeta Mercantil - O ano de 2009 será nebuloso para o Brasil?

Em um quadro de desaceleração da atividade econômica, o primeiro trimestre de 2009 será bastante complexo, pois reúne três eventos de forma simultânea. O primeiro decorre justamente da desaceleração da economia por causa da decisão política de manter elevada a taxa de juros ao longo de 2008. O segundo evento é o efeito da sazonalidade. A economia entra em um ritmo mais lento, de pouca atividade na agricultura. O terceiro aspecto é a manifestação de uma crise mais ampla e temo que poderemos ter uma variação do PIB próxima de zero, se não negativa. Portanto, a elevação da taxa de juros, nesse momento, contribui para comprometer a atividade econômica. Por outro lado, é necessário ter uma postura anticíclica, especialmente porque, se olharmos a atividade econômica, três componentes importantes serão afetados.

Gazeta Mercantil - Quais áreas serão afetadas.

Os setores privado e público, além das famílias. As empresas reduzirão o volume de investimentos e as famílias conterão mais o consumo. Então só restará ao setor público atuar de forma autônoma. Isso implicaria em uma ação mais precisa no âmbito das políticas públicas e seria fundamental mudar a composição do gasto brasileiro. Desperdiçamos muito com juros, um gasto improdutivo. O Brasil compromete 7% do seu produto com gasto de juros. Uma redução da taxa de juros permitiria comprometer menos recursos públicos com o pagamento de juros e, evidentemente, isso poderia ser repassado a áreas fundamentais para manter o nível de atividade e para proteger o emprego e a produção nacional.

Gazeta Mercantil - Como o senhor avalia o futuro do trabalhador brasileiro que ascendeu socialmente nos últimos anos? Há risco de retrocesso?

Historicamente, o Brasil tem se posicionado relativamente bem em momentos graves equivalentes aos atuais. Em 1929, por exemplo, dada a gravidade da crise, houve uma intervenção política que se traduziu a partir da Revolução de 30 de construir um outro Brasil, urbano e industrial. Nesse contexto, a crise de 73 também, ainda sob o regime militar, trouxe mudanças importantes. Decisões de maior expressão como a implementação do segundo plano nacional de desenvolvimento, grandes projetos de expansão econômica, introdução do Pis/Pasep, entre outros. Decisões importantes para integrar o econômico com o social que, de certa maneira, estão associadas à crise.

Gazeta Mercantil - A crise é um grande teste para o governo Lula?

Sim. É fundamental que haja uma manifestação política de forma mais encorpada, de partidos e de movimentos sociais. Até o momento, há apenas uma tensão dos empresários da indústria automobilística, da agricultura, da construção civil, insatisfeitos com a política conduzida pelo governo.

Gazeta Mercantil - Qual é o patamar ideal para o dólar?

Valorização do dólar é uma situação paradoxal. De um lado, o centro da crise se dá nos Estados Unidos e, ao mesmo tempo, apesar da debilidade da economia, a sua moeda é fortalecida por essa valorização junto com outras moedas. É estranho porque o certo seria verificar que, com a debilidade economica, teríamos o enfraquecimento da moeda e acontece exatamente o contrário no Brasil e em outros países. Mas a elevação da taxa cambial é também uma oportunidade para o País considerar a possibilidade de criar benefícios para empresas que dependem de insumos importados.

Gazeta Mercantil - De que forma?

No setor agrícola, convivemos com uma demasiada dependência externa. Isto poderia ser objeto de uma política mais agressiva para que o setor produtivo nacional privado pudesse operar no sentido de alterar este quadro. Ao mesmo tempo, a questão cambial torna o exportador brasileiro mais competitivo pelo efeito da valorização da moeda que o obriga a ser mais criativo.

Gazeta Mercantil - Os países do G-20 se reuniram recentemente para discutir a necessidade de novos mecanismos de regulação do mercado. Qual é sua avaliação a respeito?

Uma das razões da crise financeira está relacionada ao movimento de desregulamentação do setor, basicamente nos anos 80 e 90. Mas não me parece que a crise vá se resolver com mais regulação. É um avanço ter um grupo envolvido no tema, mas vivemos uma crise estrutural. Se olharmos em um período mais longo, o ciclo de expansão do pós-guerra aconteceu por meio da oferta de crédito, conduzida pelos bancos de investimentos. Depois, nos anos 70, o crédito passou a ser financiado pelos ativos dos bancos de investimentos vinculados aos bancos comerciais, que, juntos, realizavam uma série de operações de títulos, e agências classificadoras de risco validavam as operações. Tal modelo mostrou-se insustentável agora e, portanto, não se sabe que mecanismo financiará a expansão e o desenvolvimento econômico do mundo nas próximas gerações.

Gazeta Mercantil - Como será esta nova ordem mundial?

A grande questão é descobrir qual será a base de expansão do desenvolvimento. Continuará sendo o ciclo de consumo de bens duráveis? Apenas 20% da população no mundo tiveram acesso à expansão da economia sustentada em bens duráveis. Se vamos seguir no padrão universal de consumo dos países ricos, então aprofundaremos o desequilíbrio ambiental. No entanto, cresce no mundo uma consciência em torno da insustentabilidade desse padrão. Mesmo que se defina um novo modelo de regulação financeira, mesmo que se consolide um novo padrão de financiamento do desenvolvimento, é preciso entrar em campo o elemento político. A superação da crise econômica dependerá de decisões políticas.

Gazeta Mercantil - É possível dimensionar a crise?

As informações que se têm não são as mais precisas e reais, porque uma parte desses títulos não é registrada. Se a gente somar o PIB do mundo, segundo o FMI, é inferior a US$ 60 trilhões, e as operações do sistema financeiro superam US$ 600 trilhões. Há um enorme descolamento entre a economia real e a imaterial do resultado dessas operações. Os detentores de riqueza simplesmente aceitarão esse prejuízo? São decisões políticas muito importantes. Não se pode permitir um sofrimento humano muito grande, com a quebradeira de bancos, montadoras. São muitos os interesses em jogo. Ao mesmo tempo em que a crise de 29 representou basicamente o fim de uma transição que começou no século XIX, com o ciclo do capitalismo na Inglaterra - e depois veio a soberania dos Estados Unidos - agora a Ásia aparece como um continente forte. Será que a China ou a Índia também terão capacidade para sustentar o crescimento do mundo?

Gazeta Mercantil - Que bloco econômico sairá mais fortalecido?

No meu modo de ver, os blocos econômicos hoje têm um papel muito limitado. O sistema das Nações Unidas, do Banco Mundial, do FMI foi criado no momento em que os países eram maiores que as empresas. Hoje, vivemos uma situação inédita, exatamente contrária. As três maiores corporações do mundo têm um faturamento equivalente ao PIB do Brasil, que é considerado a 10ª maior economia do mundo. O Brasil tem uma empresa que supera o PIB da Argentina. Há um desequilíbrio do poder econômico do mundo capitaneado pelo poder das especulações mundiais. Sem governança, essa crise nos levará a uma maior concentração do poder econômico. Isso já ocorria, mas agora se intensifica. E as grandes corporações são portadoras do padrão de consumo do século XX. Essa é uma reflexão importante.

Gazeta Mercantil - O Ipea tem discutido estas questões?

Sim, estamos imbuídos de pensar a continuidade, diferentemente do contexto político dos anos 60. É necessário ter alguma participação que envolva a inteligência nacional e o futuro da sociedade. O Ipea não está mais concentrado no Rio e em Brasília. Abrimos duas representações, uma na Região Norte e outra no Nordeste, para diversificar o conhecimento e fragmentar a informação. Com a perspectiva de conectar os diferentes "brasis", e pensar a inteligência nacional.

(Gazeta Mercantil/Caderno A - Pág. 7)(Cláudia Dantas)