Título: Ainda falta o acerto histórico
Autor: Quadros,asconcelo ; Correia, Karla
Fonte: Gazeta Mercantil, 15/12/2008, Brasil, p. A10

15 de Dezembro de 2008 - Dentro do governo, o ministro da Justiça, Tarso Genro, é uma das vozes mais ativas na defesa do conceito de que o crime de tortura não prescreve, discurso que retoma feridas ainda mal cicatrizadas na relação entre sociedade e militares. Em entrevista a este jornal nos 40 anos de decretação do AI-5, o ministro lembra os resquícios de problemas nesse relacionamento e prega o acerto histórico com esse passado. A seguir, os principais trechos da conversa.

Gazeta Mercantil - O que foi o AI-5?

Foi um momento de virada do próprio regime militar, que a partir daquele momento sufocou a possibilidade de resistência pela legalidade, para a retomada do projeto democrático no Brasil, que foi interrompido em 68. Foi um estímulo, na verdade, ao processo de violência que depois ocorreu entre os resistentes do regime e a ditadura militar.

Gazeta Mercantil - Onde o senhor estava quando o ato foi editado?

Em 1968 eu já estava no quarto ano da faculdade de direito. Lecionava, estudava e também trabalhava no escritório de advocacia do meu pai e militava. Já naquela época eu pertencia a uma dissidência do PC do B e militava no velho MDB.

Gazeta Mercantil - O que mudou no Brasil nesses 40 anos?

Eu enxergo três mudanças fundamentais. Primeiro, há um avanço na cultura democrática do país, em todas as classes sociais. Em segundo lugar, há um avanço institucional no Estado brasileiro. O Estado está melhorando, está mais consistente, inclusive mais transparente. E o terceiro avanço, acho que há um processo de recoesão social do Brasil com a diminuição da desigualdade.

Gazeta Mercantil - O clima político favorece a elucidação das pendências deixadas pelos militares, como a tortura?

Acho que nós vamos ter um momento importante agora com o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) daquela ação da Ordem dos Advogados do Brasil. O STF vai fazer a interpretação da Lei da Anistia em última instância. O meu entendimento é que os crimes cometidos por indivíduos - e que inclusive não eram sequer abrigados pelos regulamentos, pelas leis da ditadura - não são crimes políticos, portanto não são passíveis de anistia. Quando se fala em investigar e punir torturadores, não está se falando em Forças Armadas, porque não se trata de fazer o inquérito sobre a instituição, mas sim de indivíduos civis e militares que violaram o seu próprio mandato como servidores públicos.

Gazeta Mercantil - É favorável à criação da Comissão da Verdade?

Acho que se fosse um ato do Congresso Nacional seria altamente positivo.

Gazeta Mercantil - O resto do período autoritário?

Não existem seqüelas estruturais, seqüelas brutais. Existem resíduos, resquícios. E são resquícios importantes, porque atingem a uma parcela da população brasileira. E um país que quer afirmar um estado de direito soberano, um estado de direito maduro, um estado de direito que abranja todos os cidadãos, é obrigado a tratar desses resquícios que ainda sobram.

Gazeta Mercantil - Quais são?

A questão da tortura, por exemplo, as respostas que a Comissão de Anistia está dando para reconhecer, pelo Estado brasileiro, as injustiças que cometeu, e a qualificação do sistema de segurança pública no Brasil, como hoje, de um novo conceito de segurança nacional. Se é uma segurança do estado de direito democrático, não vai haver segurança nacional orientada pela guerra fria.

Gazeta Mercantil - Quais as propostas?É que a segurança pública, como dever do Estado e responsabilidade de toda a sociedade, tem que ser uma segurança que proteja o cidadão e que as forças policiais, os aparatos de segurança do Estado, não sejam vistos como um ciclo de violência e de arbítrio. Enfim, precisam ser vistos como protetores do direito da cidadania, contra o crime e contra a violência.

Gazeta Mercantil - O que o senhor vivenciou durante a vigência do AI-5?

Do ponto de vista pessoal a memória que eu tenho é a retomada do arbítrio do Estado, que já tinha a cassação dos direitos políticos do meu pai. Do ponto de vista mais social, uma visão de que a sociedade brasileira ia ser mais elitizada e mais violenta.

Gazeta Mercantil - O que precisa ser melhorado?

As formas mais adequadas de participação da sociedade civil na decisão sobre políticas públicas, a ampliação do acesso à justiça, a qualificação do aparato policial para trabalhar dentro do estado de direito democrático e a realização de uma reforma política, para dar mais autenticidade para a esfera da política e livrar a política das conveniências meramente regionais e das articulações oligárquicas que ainda pairam sobre a maioria dos partidos no país.

Gazeta Mercantil - Sempre que o governo propõe uma revisão na questão da tortura e a área militar reage. Não está na hora de fazer esse acerto histórico com esse passado?

Não há nenhuma proposta de processo inquisitório sobre o papel das Forças Armadas durante o regime militar. Isto é uma formulação que algumas pessoas fazem para tentar se abrigar em um risco de prestígio que as Forças Armadas têm e que devem continuar tendo. O que nós estamos tratando e como estamos tratando disso não é do papel das Forças Armadas no regime militar e sim de indivíduos fugindo da sua responsabilidade que cometeram atos de barbárie, atos de tortura. E o país que não tratar dessas questões é um país que não muda a sua cultura para a adequá-la a um estado democrático de direito desenvolvido.

(Gazeta Mercantil/Caderno A - Pág. 10)(Vasconcelo Quadros e Karla Correia)