Título: A infância às margens do grande rio
Autor: Arruda,Guilherme
Fonte: Gazeta Mercantil, 22/12/2008, Brasil, p. A6

Manaus, 22 de Dezembro de 2008 - Em algum ponto do Rio Amazonas, entre Belém e Manaus, dezenas de crianças de um a 11 anos de idade, muitas delas desacompanhadas dos pais, surgem do meio da floresta empregando suas energias nos lemes de frágeis embarcações feitas de casca inteiriça de árvore, chamadas de ubá. Elas remam no sentido inverso ao da correnteza na ânsia de agarrar-se aos barcos de passageiros que interligam cidades costeiras com o objetivo de venderem o que a natureza dá de graça a eles. Tudo sem truques ou dublês - tanto que o barco conserva a velocidade de 50 km por hora.

Poucos terão a chance de prender-se e entrar no navio. O que fica na retina, entretanto, são olhares resignados dos que tiveram a oportunidade perdida. Quem sabe da próxima vez. Afinal, esta ação ocorre duas vezes por semana, quase sempre das 8 às 11 horas. A realidade aqui é tão nua quanto os corpos destas crianças; vence o mais forte.

A chance de cair no rio ou que algo de pior aconteça na arriscada manobra de aproximação leva a um estado de ansiedade quem está protegido do lado de cá, assistindo as pequenas criaturas arriscando a vida por R$ 2,00, preço cobram por um saco plástico com 500 gramas de camarão - mesmo prato que, para uma pessoa, é oferecido nos melhores restaurantes das principais capitais brasileiras a R$ 50,00. Caso pule do navio levando R$ 10,00 preso ao calção, o dinheiro será recebido com festa pela família de Gedian, cinco anos de idade, que balança a cabeça quando pergunto se lembra de alguém do governo ter procurado seus pais - ou que tenha ouvido falar em Ministério Público.

Esta é a Amazônia, uma região em busca de alguém que consiga decifrá-la por inteiro, de um povo prisioneiro da sua própria história, no qual os problemas vão além do desmatamento da floresta.

Aqui quase tudo depende vitalmente dos rios.

Estamos a bordo do N/M Rondônia, um catamarã de uma tonelada, construído em 1981 pelo Estaleiro Inconav, em Niterói (ES), e capaz de deslocar mais 600 toneladas de carga, ajudado por dois motores Scania, de 600 HP de potência cada. Entre os pouco mais de 800 passageiros nativos, estão estrangeiros em férias com suas máquinas digitais registrando tudo.

A primeira vez que viu esta cena dona Graça, 59 anos de idade, moradora em Monte Alegre - a quarta das dez paradas do Rondônia - chorou muito e não dormiu duas noites. Jogou ao rio o pouco que tinha para si, alguns pacotes de bolacha e roupas. "É triste ver isso", conta, testemunhando a cena outra vez. "Dá dó", diz dona Graça, uma mulher, diga-se, corajosa, daquelas de pegar um pedaço de madeira e bater na cabeça de um porco, cravar a faca, fazer sangrá-lo, arrancar o couro e depois preparar a carne.

Após deixar a cidade de Óbidos, ainda no Pará, as pequenas canoas começam a aparecer no horizonte. A preparação inicia bem cedo, antes das 6 horas da manhã para chegar ao local da abordagem na hora certa. É bem provável que tenham pego "carona" para descer o rio Amazonas e, certamente, irão pegar outra para retornar.

Se eventualmente um menino ou menina cair na água, por causa da agitação das ondas, o espírito de solidariedade é acionado, incondicionalmente, com a prestação de ajuda aos náufragos. Nem todos pedem e a razão é simples. Os nossos bravos marinheiros sabem se virar; passaram por rigorosas sessões de treinamento antes mesmo de dizerem palavras como papai e mamãe. Como estratégia de "marketing", estes pequenos seres são colocados na proa, olhar pedinte, prontos para tocar os corações mais sensíveis.

Cabe às mães a tarefa de ministrar as aulas de nado e somente elas possuem o direito de dar autorização ao filho de participar da tarefa - sem o auxílio de colete salva-vidas, obviamente. Elas precisam estar 100% seguras de que seus rebentos não irão se afogar.

Bolsa Família

Se a criança aparentar medo há duas opções: ou é vetada ou então esconde o medo, relata Solange Correia, 27 anos, moradora em uma comunidade perto do Rio Jacuru, e mãe de sete filhos. Neste dia ela levou dois filhos e mais dois sobrinhos. Quando Solange subiu no barco, os passageiros haviam comprado o que queriam. "A gente ganha pouco, né, mas o que a gente ganha é muito pra nós que somos pobres", informa Solange, olhar conformado por não ter vendido nada. O produto retornará para casa, onde servirá de alimento por um ou dois dias. O pedido para receber o Bolsa Família passa de um ano. Até hoje espera uma resposta.

Depois de cumprir o dever, muitas destas crianças vão com a roupa molhada para a escola.

A floresta fornece o alimento por meio do rio e da mata, portanto, ninguém passa fome - por pior que seja a situação. Após seis dias viajando de barco e percorrendo as margens do rio Amazonas o que se vê são populações vivendo em estado primitivo. Miséria é encontrada nos centros urbanos, como Manaus e Belém. Basta verificar os dados do Índice de Desenvolvimento Familiar (IDF), criado pelo Ipea para analisar o grau de pobreza: Manaus é a segunda capital em miséria do País e não menos pior que Belém e Rio Branco (AC), todas com 0,49. Considerando que a média nacional é de 0,60, o Amazonas possui hoje a pior situação. O rio é tudo na imensidão da floresta.

O N/M Rondônia segue - indiferente - seu curso rio acima, singrando ainda os rios Guajará, Pará e Negro, com o trinar dos pássaros ao fundo e histórias de encontros e desencontros a bordo. Como o do idoso que busca tratamento em Santarém, situada exatamente na metade do trajeto entre as duas principais capitais do Norte, da moça bonita que passou as suas férias na casa dos pais e retorna para Manaus viver com o namorado, ou ainda da empresária de Monte Belo que foi fazer compras em Belém para abastecer a sua loja. Uma parte da encomenda carrega consigo junto à rede onde dorme. A outra parte seguiu na frente em outro barco.

Da estudante de enfermagem que trancou a matrícula para embarcar em uma "canoa furada" no qual ganha pouco mais de R$ 500,00 por mês, trabalhando mais de 12 horas por dia, sem receber hora-extra, e sem tempo para escolher um emprego melhor ou ver os dois filhos que moram com os avós. Eu digo que sua vida é um inferno. Ela devolve dando de ombros e um sorriso.

O catamarã tem capacidade para levar 850 passageiros, embora nos períodos de alta temporada (junho a dezembro) este número duplique. A sua estrutura inclui 56 camarotes, mas poucos possuem dinheiro para desfrutar de um lugar privativo. O preço deste luxo custa R$ 350,00 trecho Belém Manaus. A maioria opta por armar rede, pagando R$ 120,00 por pessoa, ou R$ 220,00 em uma ala com ar-condicionado.

A alimentação não está incluída no preço da passagem e - pior - lidera o rol das queixas. Dona Dilce, 60 anos, três netos, reclama a péssima qualidade da comida servida. "Não condiz com o preço que se paga", reclama. Aproveita a chance para listar o cheiro insuportável que sai dos banheiros. "Higiene não é o forte deste barco", emenda. No inverno (que começa em dezembro), ela troca Belém por Manaus.

Miséria e condições primitivas convivem lado a lado. Não era para ser assim. Eis uma região abundante em ouro, nióbio, petróleo, jazidas de manganês, de ferro, farta em diamante, rubi, esmeralda, cobre, zinco, prata, sem falar da maior biodiversidade do planeta, geradora de lucros incalculáveis para os donos de laboratórios. Na primeira parada do Rondônia, na hidroviária de Gurupá, cidadezinha com somente 25 mil habitantes, uma novidade: fica-se sabendo que o telefone celular chegará neste mês.

O maior rio do mundo, em volume de água e em extensão (são cerca de 7 mil km), cumpre o mesmo papel de uma Presidente Dutra. Não é só o Amazonas e o Negro que promovem o espetáculo do encontro das águas. Quando o Tapajós deságua no Amazonas, suas águas não se misturam por um longo trecho e bem no centro de Santarém pode-se avistar águas barrentas da Amazonas tentando engolir as águas azuis do rio Tapajós.

As margens dos rios parecem apenas observar, sem pressa, a travessia serena de um povo que mal consegue levanta a voz para reclamar, deixando patente sua condição de retiro.

O jornalista viajou à convite da General Motors do Brasil

(Gazeta Mercantil/Caderno A - Pág. 6)(Guilherme Arruda)