Título: Entrevista: Craig Kelly
Autor: Fleck, Isabel
Fonte: Correio Braziliense, 19/03/2011, Política, p. 4

A Visita de Obama Ex-número 2 dos EUA para o Hemisfério Ocidental defende a presença brasileira em caso de expansão do Conselho de Segurança da ONU

Ao lado do atual embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Thomas Shannon, o diplomata Craig A. Kelly esteve presente em um dos momentos mais delicados na relação recente entre Washington e Brasília. Em 2009, quando Shannon era subsecretário de Estado para o continente, Kelly, o então número 2 da diplomacia americana, foi um dos representantes mais atuantes do país na problemática questão de Honduras, após a deposição do presidente Manuel Zelaya. Na época, Brasil e EUA discordaram abertamente na postura sobre a saída de Zelaya e sobre o novo governo hondurenho ¿ até hoje não reconhecido pelo Brasil.

Hoje, Kelly avalia que os dois países conseguiram discutir sua diferenças ¿com franqueza¿, como verdadeiros parceiros fazem. ¿A crescente influência global do Brasil pode levar a outras áreas em que os dois países discordam, mas nós devemos ser capazes de abordar essas questões olhando para o futuro¿, disse o diplomata, em entrevista ao Correio às vésperas da chegada do presidente Barack Obama a Brasília. Para o especialista, que foi subsecretário de Estado adjunto para o Hemisfério entre setembro de 2007 e setembro de 2010 ¿ sendo o vice de Shannon e, depois, de Arturo Valenzuela ¿ e assistente direto do então secretário de Estado Colin Powell, entre 2001 e 2004, a visita de Obama é um ¿passo significativo nas relações bilaterais¿, mas faz parte de uma aproximação que já vinha ocorrendo entre os dois países.

Com a experiência de quem esteve tão perto das decisões diplomáticas americanas, Kelly, atual vice-presidente do Grupo Cohen, faz um prognóstico positivo para os brasileiros, que serviria como um bom conselho para o mandatário americano em sua passagem por aqui: ¿Não posso falar pelo presidente Obama, mas acredito que uma expansão do Conselho de Segurança da ONU que não inclui o Brasil é inconcebível¿.

"Sem o Brasil é inconcebível"

O senhor considera que, neste momento, há um esforço dos dois lados para reaquecer a relação entre Brasil e EUA? A visita do presidente Obama é certamente um passo significativo nas relações bilaterais. As pessoas vão falar de ¿reconexão¿ após as divergências sobre o Irã, mas eu acho que é melhor ver a visita como parte de um relacionamento em crescimento entre duas grandes democracias com influência global. Os dois presidentes vão discutir questões políticas e econômicas complexas. Mas não vamos esquecer que, como a primeira mulher presidente do Brasil receberá o primeiro presidente afro-americano dos Estados Unidos, vamos presenciar um grande marco nas trajetórias de inclusão social dos dois países.

As tensões entre os dois países aumentaram durante os últimos dois anos devido a temas como o apoio do Brasil ao Irã e a posição sobre Honduras. Isso tende a aumentar com um papel cada vez maior do país no mundo? Não é nenhum segredo que o Brasil e os EUA tiveram diferenças sobre o Irã e Honduras no ano passado. No entanto, nós discutimos essas diferenças com franqueza e no contexto de uma relação geral que é muito importante para os povos dos dois países. Isso é o que os parceiros fazem. A crescente influência global do Brasil pode levar a outras áreas em que os dois países discordam, mas nós devemos ser capazes de abordar essas questões olhando para o futuro. Basta ver as deliberações no âmbito da Otan, por exemplo ¿ são incontáveis as discordâncias, mas elas são debatidas abertamente. Se não houvesse divergência no mundo, não haveria necessidade de diplomacia.

Na sua opinião, Obama deve apoiar um assento permanente para o Brasil no Conselho de Segurança, durante a visita ao país? A questão da reforma da ONU e ampliação do Conselho de Segurança é extremamente complexa. Não posso falar pelo presidente Obama, mas acredito que uma expansão do Conselho de Segurança da ONU que não inclui o Brasil é inconcebível.

O senhor acredita que relações Brasil-EUA foram prejudicadas por um viés ¿antiamericano¿ do governo Lula? É perigoso atribuir as diferenças de opinião a um ¿antiamericanismo¿. Não que o antiamericanismo não exista ¿ é claro que existe. Mas devemos ser cautelosos com a análise preguiçosa que atribui desacordos a questões de animosidade cultural.

A China tornou-se o principal parceiro comercial do Brasil, tirando os EUA do posto que ocupava desde a década de 1930. Como os EUA poderiam recuperar essa posição? Eu não vejo o alcance global da economia chinesa como uma ¿ruptura¿ na relação econômica Brasil-EUA. O rápido crescimento da China tem produzido uma enorme oportunidade e um enorme desafio para as economias da América Latina e do Caribe. Os EUA continuam sendo um parceiro econômico importante na região. Ao mesmo tempo, o comércio cada vez mais globalizado da América Latina, inclusive com a China, aumenta a prosperidade do nosso continente, e isso é bom para a região e para os Estados Unidos. Este não é um jogo de soma zero, no qual um lado só pode ganhar quando o outro perde.

O chanceler Antonio Patriota disse que o pedido dos EUA por mais concessões dos países em desenvolvimento ¿não era justificável¿. É possível que consigam um entendimento nessa visita, que leve à conclusão da Rodada Doha? Recentes problemas econômicos globais tornam a conclusão da Rodada Doha ainda mais importante, e é claro que a cooperação Brasil-EUA será fundamental. Acredito que os dois presidentes vão discutir isso.

Os dois países querem promover ainda mais a cooperação em biocombustíveis, mas as exportações brasileiras ainda são penalizadas pelas tarifas sobre o etanol brasileiro. Como é possível cooperar com este tipo de barreira? Nossa cooperação em biocombustíveis na África, no Caribe e na América Central tem sido bem-sucedida, apesar da sensível questão da tarifa do etanol. Qualquer coisa que aumente a cooperação Brasil-EUA em matéria de energias renováveis é bem-vinda.

Desde que assumiu, a presidente Dilma Rousseff tem reforçado a importância do respeito aos direitos humanos, independentemente do país ou de sua liderança. Como os EUA veem a nova posição do governo brasileiro? Os EUA esperam uma maior cooperação em matéria de direitos humanos. Somos dois países com populações diversificadas, que têm um acordo formal de compartilhar experiências sobre o combate à discriminação racial. Podemos conseguir mais, trabalhando juntos em Genebra, em Nova York e em todo o mundo.

Brasil e EUA assinaram em 2010 um acordo destinado a reforçar os laços de Defesa ¿ o primeiro desse tipo em mais de 30 anos. Isso demonstra que os dois países estão mais dispostos a trabalhar juntos para a segurança regional? A cooperação Brasil-EUA em matéria de segurança é importante, como vimos no Haiti, onde o Brasil tem dado seu sangue para ajudar um país que precisa. O recente acordo de cooperação em Defesa entre Brasil e Estados Unidos é tanto um reflexo dessa relação no passado quanto um estímulo para futuros laços.

O senhor, que trabalhou nos últimos dois governos americanos, acredita que os EUA perderam oportunidades na América Latina e no Brasil durante o governo Bush? É importante notar que mesmo durante um momento em que os EUA estiveram fortemente centrados no terrorismo e nas guerras no Afeganistão e no Iraque, nós dobramos a ajuda à América Latina e expandimos enormemente a nossa rede de acordos de livre-comércio na região. A visita do presidente Obama é um sinal da importância dos laços estreitos na vizinhança, e do seu compromisso com esses laços.

A América Latina pode se tornar mais importante para os EUA nos próximos anos? A globalização e a importância dos chamados mercados emergentes vão certamente elevar o perfil da América Latina nos Estados Unidos. As relações dos EUA com a América Latina e o Caribe não podem ser simplesmente ¿bilaterais¿. Precisamos conversar com nossos parceiros hemisféricos sobre o resto do mundo, e com o resto do mundo sobre as Américas. O setor privado faz isso há anos.