Título: O multilateralismo, na real
Autor: Rothenburg, Denise; Luiz, Edson
Fonte: Correio Braziliense, 20/03/2011, Política, p. 2

É esperto o excesso de prudência de Obama na crise líbia. A regra nessas situações é ¿o mundo¿ exigir dos Estados Unidos que ajam, para na sequência o mundo passar a criticar os EUA por terem agido

Uma fantasia habitual a respeito do poder é considerar que ele tudo pode. A decorrência é o observador e o analista serem aprisionados pela variável da ¿vontade política¿.

Se o governante não fez, foi porque não quis. Poderia ter feito, mas decidiu não fazer. É o primado absoluto do arbítrio do líder.

Talvez os meandros do espírito tenham uma explicação para a fantasia. Para essa tentação quase irresistível de projetar no outro onipotente a capacidade de superar os limites e as frustrações impostas a nós, simples e normais.

Por que razão ainda hoje o soberano, nas suas diversas formas (o rei, o ditador, o partido, a superpotência), ocupa um lugar tão especial na maneira como as pessoas veem o mundo?

¿Mundo¿ é uma palavra útil em muitas situações.

O mundo árabe está fervendo. E as pessoas só querem saber o que ¿o mundo¿ deve fazer a respeito. Não houvesse certos vetores, entre eles a imigração, o terrorismo e o petróleo, provavelmente a resposta mais razoável seria ¿nada¿.

O presidente americano que visita o Brasil é um sujeito esperto. Se não fosse, não teria sido eleito presidente dos Estados Unidos.

Na crise da Líbia, Obama vem esperando o suficiente para obrigar os outros, franceses, ingleses e Liga Árabe, a liderar o movimento intervencionista.

Um esperto excesso de prudência. A regra nessas situações é ¿o mundo¿ exigir dos Estados Unidos que ajam, para na sequência o mundo passar a criticar os Estados Unidos por terem agido. Sem falar nos custos materiais. E não é só no mundo pró-americano que isso acontece.

Quando Manoel Zelaya foi deposto em Honduras, a progressista e popular América Latina correu a Washington para sugerir o estrangulamento de Tegucigalpa como forma de pressionar os golpistas a aceitarem de volta o removido.

Um vexame continental, de resultados sabidos.

Conversava outro dia com o deputado federal Aldo Rebelo (PCdoB-SP) sobre as guerras e ele me descreveu certa passagem de uma visita de políticos brasileiros ao Vietnã, anos atrás.

Um da delegação se disse admirado pelas longas e duríssimas guerras de independência do povo vietnamita contra franceses e americanos. ¿Melhores são vocês, que conquistaram a independência sem derramar nenhum sangue¿, respondeu na hora o representante do Vietnã.

Nossa independência teve sim algum sangue, pouco perto do investido por eles, mas o episódio é engraçado e bom.

A sabedoria das guerras está em ganhá-las sem precisar lutar mais do que o necessário. Se houver necessidade de sangue, que seja o dos outros. Nenhum líder, muito menos o presidente da superpotência, pode dar-se ao luxo de soltar palavras que não possam depois ser sustentadas pelos atos.

Hosni Mubarak caiu porque não tinha o apoio do Exército egípcio. Obama deveria ter mandado tropas ao Egito para manter Mubarak no poder?

O movimento democrático no Barein está sendo contido porque traz com ele a ameaça de controle iraniano sobre o pequeno país, estratégico para a vizinha Arábia Saudita. E portanto para o petróleo mundial. Obama deveria enviar tropas para garantir a hegemonia americana numa eventual transição de poder aos xiitas?

O Iêmen é importante para a luta contra a Al Qaeda. Obama deveria mandar tropas para apoiar os manifestantes, e assim garantir o controle americano mesmo depois da queda de um governo aliado?

A seguir um certo raciocínio, daqui a pouco o mundo estará povoado de tropas dos Estados Unidos. Pagas pelos contribuintes americanos.

Estamos assistindo agora à concretização de um certo multilateralismo. Especificamente na Líbia, Washington vai deixando claro que cabe aos europeus e aos árabes cuidar do pedaço norte da África.

Assim como caberia ao Brasil, segundo essa lógica, cuidar do pedaço sul das Américas, que fala espanhol e um pouco de francês.