Título: Esmola e benefício
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 21/03/2011, Brasil, p. 9

Um quarto dos meninos e das meninas que vivem nas ruas do Brasil recebem dinheiro do Bolsa Família por meio de seus pais ou responsáveis. Eles representam, mais precisamente, 26% das 23.973 crianças e adolescentes que perambulam por semáforos, esquinas, praças e pontes nas médias e grandes cidades do país. Os dados, levantados por estudo financiado pela Secretaria de Direitos Humanos, ligada à Presidência da República, colocam em xeque justamente um dos princípios do maior programa de transferência de renda do governo federal: exigir a frequência escolar dos contemplados, bem como o acompanhamento da caderneta de saúde. Tais aspectos, sempre invocados quando surge a acusação recorrente de que o Bolsa Família tem um caráter meramente assistencialista, ficam extremamente comprometidos quando se trata de uma população tão vulnerável socialmente.

O estudo, intitulado 1º Censo Nacional de Crianças e Adolescentes em Situação de Rua 2010, aponta ainda que a proporção de contemplados com o programa do governo federal pode ser ainda maior, já que 27,4% dos entrevistados disseram não saber ou não lembrar se a família recebe algum benefício. Para a vice-presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Miriam Maria José dos Santos, o dado causou ¿surpresa¿. ¿A gente tende a pensar que todo o problema se resolve com renda, mas o que vemos é a necessidade de outras políticas sociais¿, diz. Segundo Miriam, o Estado precisa fiscalizar a frequência escolar dessas crianças, mas também envolver os educadores e toda a sociedade no combate ao desafio da mendicância, do trabalho infantil e de outras formas de exploração. A reportagem solicitou entrevista com algum representante da Secretaria de Direitos Humanos, mas não teve retorno.

Juiz da Vara da Infância e Juventude do Recife, Humberto Costa vê o risco de o programa social do governo ¿morrer¿ caso não haja uma estruturação mais efetiva. ¿Considero o Bolsa Família de suma importância, mas para dar o `start¿, para tirar a pessoa do ponto morto. Agora, se o Estado continua ofertando o Bolsa Família e a sociedade segue dando esmolas, isso vira um negócio sem fim¿, destaca o magistrado. Ele defende a exigência da contrapartida, mas entende como extremamente difícil fiscalizar meninos que passam os dias nas ruas, tanto no que diz respeito à frequência escolar quanto à real aprendizagem obtida nas aulas. O Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) informou, via e-mail, que, desde 2008, iniciou uma estratégia de cadastramento de famílias em situação de rua, mas não soube precisar quantas já estão recebendo o benefício, em função de dificuldades técnicas.

Ao destacar que as exigências de frequência escolar e o acompanhamento da saúde se aplicam também às famílias que vivem nas ruas, o MDS informou que o processo de fiscalização é ¿idêntico ao dos demais alunos¿. E completou: ¿A diferença é que, nesse caso, quando a criança estiver com dificuldades de acessar a escola, a equipe de assistência social do município faz o atendimento no serviço de proteção básica ou especial¿.

Problemas na escola O MDS destacou ainda que, no último período de acompanhamento, em outubro e novembro de 2010, 297 beneficiários com problemas na escola tiveram registrado o motivo ¿Mendicância/Trajetória de rua¿. Depois de uma notificação e três suspensões temporárias do benefício, o repasse é cancelado na quinta vez que um problema semelhante é constatado pela equipe de fiscalização.

Reajuste Lançado em 2003, o Bolsa Família passará, a partir do próximo mês, com o reajuste anunciado pela presidente Dilma Rousseff recentemente, a remunerar cada família em cerca de R$ 115, em média. São 12,9 milhões de famílias contempladas ¿ aproximadamente 50 milhões de pessoas, com dados de fevereiro passado.

Medo de perder a ajuda Lúcia (nome fictício), 23 anos, teme perder o direito ao Bolsa Família que ela recebe em função dos três filhos ¿ com idade entre 2 e 9 anos. Mas não deixa de pedir esmolas nas ruas de Brasília na companhia deles. ¿Consigo uns R$ 40 por dia. No último Natal, ganhava até R$ 100¿, diz . Viúva há cerca de um ano, depois que o marido foi assassinado, ela vive com o que consegue na rua mais os R$ 130 pagos pelo governo.

Com a filha mais nova no colo pedindo esmolas na rua, ela diz que suas outras crianças estudam, mas não soube precisar em que série estão ¿ o mais velho, de 9 anos, tem dificuldades de ler e escrever. Mesma situação é vivida por muitas crianças e adolescentes em idade escolar que passam os dias nas ruas (ver quadro).

O estudo divulgado pelo governo aponta que, para 32,2% das crianças e adolescentes entrevistados, a decisão de ir para as ruas se deu em função de brigas em casa. Outros 30,6% indicam a violência física como motivo, e 30,4%, problema com álcool ou drogas, com eles próprios ou com os pais. (RM)