Título: O crime de Shaperville
Autor: Araujo, Eloi Ferreira de
Fonte: Correio Braziliense, 21/03/2011, Opinião, p. 13

Presidente da Fundação Cultural Palmares (FCP) Hoje é um dia especial para a cultura negra. Há exatos 51 anos, 69 crianças, mulheres e homens negros foram assassinados em praça pública pelo exército sul-africano no bairro de Shaperville, na cidade de Johannesburgo. Motivo: terem saído às ruas, pacificamente, para reivindicar a extinção da Lei do Passe, que os obrigava a portar cartões de identificação com o registro dos locais por onde lhes era permitido circular.

O crime do regime do apartheid da África do Sul ficou conhecido como O massacre de Shaperville. E motivou a instituição do Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, pela Organização das Nações Unidas (ONU). Uma data que o Brasil, a maior diáspora africana do continente americano, tem razões, infelizmente, para relembrar.

O governo brasileiro, em articulação com a sociedade civil organizada, tem dado passos largos para desestabilizar a mentalidade que constrói tragédias como a de Shaperville. As políticas de ações afirmativas, que elevaram consideravelmente o número de negros e negras nas universidades públicas; e a sanção do Estatuto da Igualdade Racial, marco histórico para a construção da igualdade de oportunidades entre negros e não negros, são dois dos mais recentes passos da política de inclusão para o acesso aos bens econômicos e culturais do país.

Mas ainda há muito a enfrentar. Uma rápida análise do noticiário é suficiente para identificar manifestações de racismo na sociedade brasileira. Em 13 de janeiro deste ano, por exemplo, os seguranças de um supermercado em São Paulo foram acusados de apreender, ilegalmente, uma criança de 10 anos, sob acusação de furto e gritos de ¿negrinho sujo e fedido¿. Depois de submeter o garoto a humilhações, os seguranças encontraram no bolso dele o ticket que comprovava que ele pagara pelos objetos sob suspeita.

No carnaval baiano deste ano, mais um indicativo de discriminação. O líder da banda de pagode Psirico acusou um empresário, em plena avenida, sob as luzes das câmeras de TV, de tê-lo chamado de ¿preto¿ e ¿favelado¿. Os casos ganharam destaque nos veículos de comunicação de massa, mas são apenas dois exemplos, entre diversos outros registrados em notas de rodapé ou em boletins de ocorrência policial.

O caldo de cultura que baseia tais ataques à identidade de descendentes de africanos está, sem sombra de dúvida, entrelaçado com o perfil dominante das mortes violentas no país, que vitimam, em sua maioria, jovens negros, segundo estudos sobre violência urbana da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O mesmo caldo que motivou o assassinato dos jovens sul-africanos.

E os brasileiros têm consciência da força simbólica do racismo. Não foi à toa que festejaram a eleição do presidente Barack Obama nos Estados Unidos da América. Um negro no comando da mais poderosa nação do mundo emite simbolismo oposto ao que guia as mãos e as vozes que agridem a identidade dos negros e negras no Brasil e no mundo.

Não foi à toa também que, das conversas com a presidente Dilma Rousseff, tenha constado a agenda da cultura negra. Para além dos resultados imediatos da discussão sobre o Plano de Ação Conjunta Brasil-Estados Unidos para a Eliminação da Discriminação Étnico-Racial e Promoção da Igualdade, que norteou a pauta sobre o assunto, há os efeitos simbólicos da visita em si de Barack Obama sobre a identidade negra no Brasil.

Efeitos previsivelmente positivos. Um dos muitos que, esperamos, serão gerados em 2011, instituído pela ONU como o Ano Mundial dos Afrodescendentes.