Título: BNDES tem de bancar o risco de seus agentes
Autor: Assis,Jaime Soares de
Fonte: Gazeta Mercantil, 16/02/2009, Brasil, p. A6
São Paulo, 16 de Fevereiro de 2009 - O Brasil pode encerrar 2009 com um superávit de até US$ 15 bilhões na balança comercial, com exportações entre US$ 180 bilhões e US$ 190 bilhões. Um bom resultado na avaliação de Joseph M. Tutundjian, diretor-geral da Rodobens Comércio Internacional. Os estoques de commodities agrícolas baixaram e este fator deve provocar uma reação dos preços. Pressionar os bancos para redução do spread não funciona, assinala. Para que o fluxo de repasses se acelere, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) terá de incorporar parte do risco dos bancos privados.
Gazeta Mercantil - O pior da crise já passou ou o quadro pode se deteriorar ainda mais?
Se dissessem que o abismo era o Lehman Brothers, ele passou e mais coisas aconteceram. A ação do Citigroup, o maior grupo bancário do mundo, a US$ 20 era uma coisa inacreditável e considerada uma boa compra. Ela chegou a US$ 3. E pode chegar a zero. As proporções e os parâmetros estão completamente confusos e não há mais avaliações que façam sentido do ponto de vista financeiro, contábil ou até lógico. O petróleo subir de US$ 30 para US$ 140 e depois despencar para US$ 30 de novo não é lógico. Isso não é mercado. Isso é uma loucura.
Gazeta Mercantil - Como avaliar o cenário, com todos estes componentes e pontos de instabilidade?
O que está complicando essa avaliação é que o alcance é global. Antes havia crise da Ásia, da Rússia, do México. Hoje está tudo ligado, tudo é simultâneo. As economias estão muito ligadas. Os Estados Unidos foram os primeiros a entrar na crise e serão os primeiros a sair. O parâmetro é o comportamento da economia norte-americana. Não pela sua importância mas pelo calendário da crise, que começou lá.
Gazeta Mercantil - Quais as providências empresas e governo têm de tomar para superar a crise?
Em relação ao setor primário, não há o que fazer. O governo não pode influenciar mercado, produção, custo de produtos como a como soja. Os preços são determinados por mercados futuros. Os metálicos como cobre, alumínio, zinco são cotados em bolsa, não se consegue influenciar. A exceção é o minério de ferro que é resultado de grandes contratos entre siderúrgicas do Japão, Coréia e da China com a Cia. Vale do Rio Doce (Vale). Nos semimanufaturados e manufaturados, aí o governo pode atuar.
Gazeta Mercantil - O que o governo pode fazer nestas áreas?
Há coisas que têm de ser feitas com efeito imediato e outras a médio prazo como as medidas de logística, portos e transportes e estradas. Estas não terão impacto imediato. São vitais mas leva tempo. O que afeta o exportador é capital de giro. Acesso a dinheiro.
Gazeta Mercantil - O Banco do Brasil não aliviou este quadro?
Sim, mas é preciso mais ainda. O Banco Central (BC) esticou o prazo de comprovação de uma exportação que recebeu um Adiantamento sobre Contrato de Câmbio (ACC) de seis meses a um ano. O que é preciso é rebaixar o custo do ACC. Está muito caro para o exportador e, além disso, escasso. Quem vai ao balcão de um banco para pegar um financiamento de carro não tem mais facilidade ou dificuldade que um exportador que fazer um ACC. A dificuldade em termos de restrição à concessão de crédito é igual porque é mental. É medo.
Gazeta Mercantil - A falta de confiança ainda sustenta este grau de influência no mercado?
O governo tem que meter dinheiro no mercado. Não adianta ele pedir para o banco privado baixar o juro. Isso nunca funcionou.
Gazeta Mercantil - A solução seria o governo "estatizar" o crédito?
Na época em que iniciei na exportação havia a Carteira de Comércio Exterior (Cacex) que era um órgão do Banco do Brasil. Ela era a estatização do crédito para a exportação. Tínhamos linhas na Cacex absolutamente independentes das linhas para o mercado privado.
Gazeta Mercantil - O retorno deste método da Cacex ajudaria?
Ajudaria sim. Acontece que hoje, se tivermos uma linha escancaradamente mais barata teremos reação do outro lado do mundo. Tem que ser feito de uma forma que possa parecer normal e não descaradamente subsidiada.
Gazeta Mercantil - Quando substituíram a Cacex pela Secretaria de Comércio Exterior (Secex) e Agência de Promoção de Exportações (Apex) no início da década de 90, o sr. estava na Cotia Trading e foi consultado. O crédito não era um problema naquele período?
Quando a Cacex acabou houve reações positivas e negativas. A primeira reação foi de alívio geral porque a Cacex era a gaveta que segurava as importações. O que sentimos falta foi de um órgão que ajudasse no financiamento à exportação. Este instrumento sumiu. A Secex era um órgão burocrático, não era operacional como a Cacex. A Apex ajuda pequenos e médios empresários a participar de feiras e cuida da abertura de mercados.
Gazeta Mercantil - Qual o caminho para se ter o fluxo de crédito mais regular?
É preciso prazo e juros compatíveis com o custo mundial. Se vou fabricar um gravador e exportar tenho de comprar plástico, botões, alumínio, pilhas e para cumprir uma programação de 1 milhão de unidades. Imagine o quanto teria de gastar com fornecedores para comprar tudo isto para produzir. Para isto, preciso de capital de giro. Quando faço um preço para 1 milhão de unidades, considero o custo da matéria-prima, de mão de obra, eletricidade e custo financeiro. Se o custo financeiro é alto atrapalha o meu custo final. Ele tem que ser razoável, não precisa ser menor que o custo mundial. Só que hoje ele é muito maior que o do resto do mundo.
Gazeta Mercantil - Como é possível migrar este custo financeiro a um patamar aceitável?
Necessariamente a solução tem que passar pelo BNDES. Como o banco não é pulverizado, ele não tem agências, usa a rede bancária para atingir seus clientes. A partir daí, o critério do risco da concessão do crédito com dinheiro do BNDES passa a ser do banco repassador. Ele dá para Itau, Bradesco e outros bancos a tarefa de repassar os recursos e são deles os critérios de risco. Qualquer medida no sentido de tirar das costas do banco repassador o risco da concessão é um caminho.
Gazeta Mercantil - Qual mecanismo seria capaz de reduzir o risco do banco privado?
Fazer um seguro. Bancar o risco dentro de determinados critérios. Sair do ideal de risco zero para o que é natural para uma exportação. Nas vendas de manufaturados e semimanufaturados é isso o que o governo pode fazer. Não adianta ele se meter a promover o produto. Ninguém vai vender aço, boneca ou biquini melhor que o próprio produtor. As medidas que dão efeito imediato no fechamento de negócios estão relacionadas a crédito.
Gazeta Mercantil - O protecionismo representa um risco no horizonte?
Não. Hoje não se tem protecionismo como nos anos 70 e 80. Vai ter alguma manifestação do Barack Obama dizendo `buy American¿. Mas também com o desemprego do jeito que está - e os democratas tem a base eleitoral nos sindicatos dos trabalhadores -, ele tem que fazer este discurso. O mundo cresceu graças a um comércio livre. Vai ter um movimento aqui e ali mas não será generalizado.
Gazeta Mercantil - Como o comércio exterior se comportara este ano?
No mundo, o comércio exterior vai crescer pouco, cerca de 1%. No Brasil, talvez manteremos o nível de exportação do ano passado. Isso vai depender muito dos preços dos commodities. Os produtos metálicos e a soja vão subir bastante.
Gazeta Mercantil - O que vai provocar esta alta de preços das commodities?
A safra está caindo e quem segurou até o máximo as suas compras chega a um ponto em que tem que repor os alimentos. A demanda nos últimos 3 a 4 meses foi de esgotamento de estoques formados antes. Chega uma hora que se tem que voltar a comprar. Em relação a carne tenho algumas dúvidas porque a Rússia é o nosso principal comprador. Eles desvalorizaram muito o câmbio e o preço subiu.
Gazeta Mercantil - Uma grande dificuldade é saber o tamanho dos estoques.
Ninguém sabe. Os metálicos, cujos estoques são mais fáceis de mensurar por causa dos mercados futuros, terão uma recuperação de preços logo em seguida aos das commodities agrícolas. As commodities sempre geraram o saldo positivo. A medida que se tem uma recuperação relativa de preços é possível que o saldo continue.
Gazeta Mercantil - O sr. havia previsto que o governo não exportaria US$ 200 bilhões no ano passado. Em 2009, qual será o resultado?
Quando estimo a manutenção do resultado do ano passado me refiro a um número mágico de US$ 180 bilhões a US$ 190 bilhões de exportações e importações de US$ 10 bilhões a US$ 15 bilhões a menos que isto. Será um ótimo resultado. Vamos ter um superávit de US$ 10 bilhões a 15 bilhões.
Gazeta Mercantil - Quais setores vão sofrer mais com a crise e quais passarão melhor por esta fase?
O setor automotivo vai sofrer muito. Não por causa do Brasil, mas por queda de demanda externa. O México, por exemplo, que é um grande mercado para os carros brasileiros, vai despencar por causa da dependência da economia norte-americana. Tudo o que for relacionado ao setor automotivo também será prejudicado. Autopeças, plásticos, pneus etc. Não consigo ver um setor que não seja afetado.
Gazeta Mercantil - Qual é a alternativa para se operar com a volatilidade cambial?
O sistema cambial flutuante é perfeito. É muito melhor que o câmbio administrado pelo governo como ocorreu no período do Delfim Netto, com suas maxidesvalorizações em que todo mundo ganhava em uma semana e perdia durante três. O câmbio está refletindo uma situação não de Risco Brasil mas de percepção de aversão ao risco. O que fez o dólar subir não foi o risco-país. As reservas não despencaram nem a economia foi para o brejo. Não houve inadimplência brasileira para que isto ocorresse.
Gazeta Mercantil - Qual é o foco da alteração cambial?
Houve uma demanda absolutamente forte e inesperada de dólares porque todas as empresas estrangeiras que operavam no Brasil e estavam indo bem anteciparam tudo o que elas tinham de caixa disponível para repor o caixa das matrizes. Sofremos o efeito financeiro da crise depois dos Estados Unidos e da Europa. As demandas por recursos das matrizes européias e norte-americanas começaram antes. Em vez da pressão sobre o real ocorrer no mês de dezembro ou janeiro, quando os dividendos são enviados, ocorreu a partir de agosto. Isso puxou a compra de dólar e a cotação subiu.
Gazeta Mercantil - O câmbio não tem mudado muito. A volatilidade foi atenuada?
Essa volatilidade do dólar que saiu de R$ 1,70 para R$ 2,30 estabilizou neste patamar. Acabou o dinheiro das remessas.
Gazeta Mercantil - A volatilidade acabou?
Estabilizou. O que precisamos saber é se este patamar de R$ 2,30 é um ponto de estabilização real ou ainda é superficial. Acho que é irreal. O real está muito desvalorizado. O dólar a R$ 2,00 deixa tanto exportadores quanto importadores felizes. Nós tínhamos US$ 210 bilhões em reservas líquidas. O Banco Central gastou US$ 10 bilhões para socorrer o real. A Rússia gastou quase metade de suas reservas e derrubou o rublo em um terço. Acho que tem espaço para o real voltar a um patamar mais realista.
Gazeta Mercantil - Quais fatores contribuem para este retorno do real?
A economia brasileira é muito diferente de dez anos atrás. Nós dependemos muito de importações. O brasileiro ainda pensa que importação é supérfluo. Não é mais. Os produtos importados de maior visibilidade são os que se veem nas ruas. São roupas, carros e motocicletas. Mas a importação real são insumos, matéria-prima, máquinas, robôs e tecnologia da informação. Sem isso nós não conseguimos ser modernos. Quando o real desvaloriza muito isso fica caro.
Gazeta Mercantil - Os principais parceiros estão em dificuldades. Como este mapa de altera?
O Brasil é há muitos anos o que se denomina como `global trader¿, um comerciante global, ao contrário do México que depende dos Estados Unidos. Basicamente, da mesma forma que nós temos uma mistura saudável e equilibrada entre tipos de produtos primários, semi e manufaturados temos uma divisão equilibrada entre as regiões do mundo com as quais fazemos negócios. O primeiro parceiro comercial do Brasil é a União Européia que representa 35% do total da exportação. O segundo é a China. Em todos eles vamos ter uma queda ou manutenção.
Gazeta Mercantil - A Rodobens importa da China. Como estão os negócios?
Importamos motos da China. Por causa da queda de 50% da demanda brasileira, por conta da falta de crédito, nós paramos de importar nos últimos três meses.
Gazeta Mercantil - A empresa revisou sua linha de negócios? Está renegociando preços?
Conseguimos nas importações reduzir o preço de compra. Esta redução está compensando parcialmente a desvalorização do real que encarece a importação.
Gazeta Mercantil - Qual a média de descontos que se consegue nestas negociações?
Os descontos são, na média, de 10%. As vezes de consegue 15%, outras 5%. Mas a média é esta.
Gazeta Mercantil - A discussão sobre preços tem sido difícil?
É difícil. Hoje nem tanto porque do outro lado o fornecedor quer buscar clientes. Para os que estavam acostumados com facilidade na negociação, com demanda forte no mundo, a coisa está mais fria. Então se consegue uma abertura maior e condições melhores. Não se consegue condições financeiras melhores, de prazos de pagamentos. Isso piorou. Agora, o preço melhorou.
Gazeta Mercantil - Quais ajustes a Rodobens teve de realizar?
Operamos com estoques baixíssimos. Paramos investimentos de expansão que estavam no `pipeline¿. Adotamos uma política de caixa e redução de custos para compensar a retração da atividade econômica do País. Não se domina o ciclo econômico do mundo e do País, mas tem controle sobre as despesas e os custos. Então é preciso ser mais eficiente nestes itens.
Gazeta Mercantil - O sr. esteve ligado à Interbrás e à Cotia Trading. O que aconteceu as grandes referências do comércio exterior?
Nos anos 70 o Brasil era um grande importador de petróleo. O País importava 80% de suas necessidades. O presidente da República Ernesto Geisel decidiu que iríamos exportar para os países exportadores de petróleo com os quais comercializávamos o produto. Assim, quando a Petrobras fosse negociar um contrato de compra, iríamos negociar uma contrapartida de produtos brasileiros. Assim começou a Interbrás, a trading da Petrobras, que tinha como foco os países do Oriente Médio como Iraque, Kuwait, Arábia Saudita e Irã.Abrimos estes mercados. Chegávamos com a delegação da Petrobras que assinava um contrato de petróleo, e começávamos a pressionar os governos a comprar frango, aço, plásticos etc.
Gazeta Mercantil - Qual o motivo de se criar uma trading para esta finalidade?
Ninguém no Brasil sabia exportar nada além de café. Era necessário alguém que colocasse as empresas debaixo do braço para ajudar nestas operações. Era preciso que alguém fizesse a ponta. O Delfim Netto, naquela época, copiou o modelo japonês, a pirâmide do Keiretsu que, na ponta tinha a trading. Debaixo desta pirâmide todos trabalhavam para produzir, a partir da matéria-prima até o produto acabado, para que esta trading fosse a ponta de lança internacional de renda. Tanto que único país que tem legislação específica para tradings é o Brasil, além do Japão. Naquela época não era necessário esconder os subsídios. As empresas tinham linha de crédito subsidiada, não pagavam imposto de renda sobre o lucro e o Delfim Netto era bom operador, era muito concreto, pragmático. Ele criava instrumentos que ajudavam. E as tradings se especializaram.
Gazeta Mercantil - Como elas se articularam nas operações comerciais?
As tradings começaram a ser o braço exportador das empresas brasileiras. Na Cotia era um braço importante de exportação da Cosipa, da Usiminas. Na Interbrás, éramos fortes com os setores de máquinas e equipamentos. Com a abertura de mercado, seguida de um câmbio de R$ 0,86 por dólar, não se conseguia exportar nada com lucro. E o Brasil começou a pegar o gosto pela importação de carros e eletroeletrônicos. O Brasil se encheu de produtos importados. Só que os brasileiros não sabiam importar também. As tradings migraram, na hora, da atividade exportadora, para importadora. Como este período durou bastante tempo com lucratividade atraente para as empresas, as estruturas de exportação foram sendo desmontadas. Algumas empresas especializadas em produtos como fertilizantes e açúcar continuaram. Com a volta do câmbio houve um equilíbrio dentro das estruturas das empresas para olhar novamente para as exportações. A época heróica das tradings desbravando mercados acabou. Mas faz falta.
(Gazeta Mercantil/Caderno A - Pág. 6)(Jaime Soares de Assis)