Título: Kadafi na mira
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 22/03/2011, Mundo, p. 18

Uma declaração de um porta-voz do Departamento de Estado norte-americano caiu como uma bomba ontem e ameaçou pôr em xeque a coalizão internacional formada por Estados Unidos, França, Itália, Canadá, Espanha e Catar. ¿Tentamos convencer o coronel (Muamar) Kadafi, seu regime e seus aliados de que eles devem deixar o poder. Esse será nosso objetivo final¿, disse Mark Toner. No primeiro dia de visita ao Chile, o presidente Barack Obama reforçou a retórica contra o ditador e confirmou o eixo de seu governo em relação à Líbia. ¿A política dos EUA é a de que Kadafi precisa partir¿, avisou. ¿Temos uma vasta gama de ferramentas, além de nossos esforços militares, que apoiam essa política¿, acrescentou, referindo-se às sanções unilaterais.

Obama também enviou uma carta a Washington, endereçada aos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado. Na mensagem, o mandatário sustenta que os ataques contra as forças do regime ¿fora da lei¿ de Kadafi eram a favor do interesse nacional dos EUA. ¿Se não fosse abordada, a crescente instabilidade geraria uma instabilidade maior no Oriente Médio, com perigosas consequências para os interesses da segurança nacional¿, explicou o presidente.

Os gestos justificaram as palavras, ou vice-versa. Menos de 24 horas depois que mísseis dos EUA transformaram parte do complexo residencial de Kadafi em um punhado de escombros, fortes explosões foram ouvidas na mesma região de Trípoli. Até o fechamento desta edição, não havia mais detalhes sobre o incidente. Também ontem, a coalizão bombardeou a cidade de Sebha ¿ feudo da tribo Guedefa, de Kadafi, a 750km ao sul da capital. A aviação da Otan alvejou ainda sistemas de radar de duas bases aéreas no leste.

O paradeiro do coronel permanecia desconhecido. Outro alvo da Operação Odisseia ao Amanhecer foi a base naval de Boussetta, 10km a leste de Trípoli. O vice-almirante americano Bill Gortney, diretor do Estado-Maior Conjunto, negou que o objetivo seja matar Kadafi. No entanto, o chanceler britânico, William Hague, recusou-se a descartar essa possibilidade. Não vou especular sobre os objetivos (...). Isto dependerá das circunstâncias do momento

Derrota ¿A intervenção militar será considerada uma derrota política para os países da coalizão, caso eles não consigam retirar Kadafi do poder¿, afirmou ao Correio o egípcio Mustapha El Sayyid, diretor do Centro para o Estado de Países em Desenvolvimento da Universidade do Cairo. Ele disse que os ataques aéreos têm sido incapazes de possibilitar que a oposição vença as forças de Kadafi no campo de batalha. ¿A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) intensificou os bombardeios para forçar a saída do ditador¿, comentou. Ele alerta que uma ofensiva duradoura na Líbia pode significar um revés para a própria aliança militar ocidental. ¿Isso causaria frustração e ressentimento no povo árabe, mesmo entre os opositores do regime líbio¿, acrescentou.

Enquanto sofria bombardeios, Kadafi também ampliava o cerco aos rebeldes. A agência de notícias France-Presse informou que francoatiradores leais ao ditador mataram pelo menos 40 pessoas e feriram 300 em Misrata, a 200km de Trípoli. Mussa Ibrahim, porta-voz do governo líbio, garantiu que a cidade foi ¿libertada há três dias¿ pelas tropas, que ainda enfrentam ¿elementos terroristas¿ na área. Um insurgente relatou que cerca de 500 pessoas foram levadas ¿sob ameaça¿ ao centro de Misrata para manifestar apoio a Kadafi. Milhares de moradores iniciaram uma contramanifestação, permitindo que francoatiradores posicionados nos telhados abrissem fogo contra a multidão.

Irã condena Ocidente O regime islâmico do Irã condenou em termos duros a intervenção militar na Líbia, na qual vê uma vez mais a ¿cobiça¿ das potências ocidentais e seus planos para ¿apoderar-se do petróleo¿ do Oriente Médio. O aiatolá Ali Khamenei, líder supremo da República Islâmica, enfatizou que seu país ¿apoia todos os movimentos de revolta cujo lema é islã e liberdade¿, sem fazer distinção entre muçulmanos sunitas, que formam a maioria dos fiéis da religião no mundo, e xiitas, majoritários no Irã, no Iraque e no Barein ¿ um dos países mais convulsionados. Khamenei foi explícito no apoio ¿ao povo líbio¿ em sua rebelião contra o regime de Muamar Kadafi.

DEPOIMENTO ¿Meu povo está farto¿

Jamal Tarhuni

¿A Líbia tem estado sob domínio de Muamar Kadafi por 42 anos. Muitos danos têm sido feitos ao meu país e aos líbios, especialmente no setor de infraestrutura. A zona de exclusão aérea proposta pela Resolução nº 1.973 do Conselho de Segurança da ONU, que obteve o apoio da Liga Árabe, é a medida correta para evitar mais mortes de civis. O povo líbio, representado pelo Conselho Nacional Transitório, concordou com a imposição de uma zona de exclusão aérea. A medida dá aos cidadãos um alívio ante o massacre que poderia ocorrer em Benghazi.

Horas antes de os caças franceses sobrevoarem a Líbia pela primeira vez, Kadafi prometeu levar mercenários e o Exército para a cidade. Ele declarou que se os insurgentes não se rendessem, não haveria clemência ou misericórdia. Kadafi não apenas ameaçaria os 750 mil moradores de Benghazi, como espalharia suas atrocidades para a região leste da Líbia. Pelo que eu entendo, a população da Líbia não deseja a presença de tropas terrestres. Tudo o que meu povo deseja é os caças de Kadafi sejam destruídos, para que os guerrilheiros da liberdade sejam capazes de continuar uma marcha até Trípoli, para libertar a nação do atual regime. Ninguém aceitaria que a Líbia fosse dividida em dois lados opostos.

Existe um consenso na Líbia e no mundo inteiro de que seria melhor se Kadafi deixasse o poder. As ações de Kadafi contra seu próprio povo, os massacres ocorridos nas últimas quatro semanas, tornaram-no ilegítimo. Se a destituição de Kadafi não ocorrer por meio das forças de coalizão, ela será feita pelo próprio líbio. A população está farta de atrocidades e almeja liberdade e democracia.¿ » Jamal Tarhuni, 54 anos, é empresário líbio envolvido em ações humanitárias em seu país. Nascido em Trípoli, vive hoje em Oregon (EUA)