Título: Otan não se entende
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 24/03/2011, Mundo, p. 22

Reunião da aliança atlântica termina sem decisão sobre ofensiva na Líbia. Forças de Kadafi matam 14 em Misrata

Misrata pode estar pagando o preço por uma intervenção militar sem liderança e sem objetivos precisos. As forças do ditador líbio, Muamar Kadafi, bombardearam ontem à noite várias casas e o principal hospital da cidade, situada 200km a leste de Trípoli. ¿O estacionamento do hospital foi atingido. Franco-atiradores dispararam de telhados e mataram 14 pessoas somente nesta quarta-feira¿, afirmou ao Correio, por telefone, Mourad Hemayma ¿ um alto funcionário do Ministério das Relações Exteriores da Líbia que abandonou o posto assim que o regime começou a atacar civis e se tornou porta-voz do opositor Conselho Nacional Transitório (CNT). A Resolução nº 1.973 do Conselho de Segurança da ONU determina o ¿uso de todos os meios necessários para deter a repressão¿ exercida por Kadafi contra os rebeldes e a população de seu país.

Um diplomata confirmou à agência France-Presse que os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) ainda mantêm divergências sobre quem deve assumir a liderança da Operação Odisseia ao Amanhecer. ¿Não se chegou a um acordo e as discussões prosseguem amanhã¿, afirmou ontem a fonte, que não quis ser identificada. Sem decisão, a Otan assiste a um massacre cometido pelas tropas de Kadafi.

O chanceler francês, Alain Juppé, assegurou que a aliança ocidental desempenhará um papel ¿útil de planejamento e de condução operacional¿. ¿Não é a Otan que exercerá a condução política da operação¿, afirmou o ministro, durante reunião com 27 colegas cujos países participam da Otan. Para o britânico Peter Caddick-Adams, estrategista militar da Cranfield University, a falta de consenso no organismo tem explicação financeira. ¿Parte do problema foi a vergonha pelo fato de o dinheiro líbio ter sido enviado a muitos países no passado, inclusive o Reino Unido, a Itália e os EUA. Isso justifica porque alguns governos gastaram um tempo excesivo em busca de uma solução diplomática¿, comentou ao Correio. A primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel, determinou a retirada de dois navios e de duas fragatas do Mar Mediterrâneo, ante a ¿falta de clareza¿ da missão.

Sem surpresas Richard Gowan, especialista do Conselho Europeu sobre Relações Exteriores, não ficou surpreso com as divergências na Otan. ¿Estava claro que haveria um racha. Ao abster-se na votação da Resolução nº 1.973, a Alemanha deixou claro que jamais apoiaria a Operação Odisseia ao Amanhecer¿, admitiu, por e-mail. Segundo ele, Berlim não acredita que a opinião pública apoiaria uma campanha militar.

Uma disputa pelo comando da ofensiva seria o motivo para as objeções da França quanto a um papel de destaque da Otan. ¿Paris crê ser essencial que governos árabes estejam envolvidos na ação militar, mas isso é incompatível com a aliança ocidental¿, disse Gowan. ¿Há forte suspeita de que o presidente Nicolas Sarkozy prefira desempenhar uma liderança contínua durante a campanha bélica a entregar a responsabilidade aos burocratas da Otan¿, acrescentou.

Gowan alerta que Kadafi buscará explorar as divisões internas na Otan, para persuadir Moscou e Berlim a forçar um fim negociado da guerra civil. ¿Nesse cenário, o ditador permaneceria no poder ou, pelo menos, se livraria de ser processado por crimes de guerra¿, concluiu. A secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, acenou com ¿mais anúncios nos próximos dias¿ sobre a participação de países árabes. Por sua vez, o premiê britânico, David Cameron, chegou a revelar que o Kuweit e a Jordânia daria ¿suporte logístico¿.

No cenário bélico, a coalizão concentrou ontem os bombardeios sobre as tropas de Kadafi em Misrata, Ajdabyia (nordeste) e Zawyiah (noroeste). ¿Para proteger as populações civis, sim, atacamos as forças de Kadafi que assediam os centros populacionais¿, confirmou o contra-almirante norte-americano Gerard Hueber. Ele disse que os caças da coalizão dispararam contra ¿carros de combate, artilharia e lança-mísseis¿ de Kadafi. Na noite de ontem, mísseis foram lançados mais uma vez sobre o complexo residencial do ditador, em Trípoli. A France-Presse divulgou que o bombardeio à capital deixou ¿vários mortos¿. O general britânico Greg Bagwell, da Força Aérea Real (RAF), garantiu ontem que a aviação líbia já não existe como força de combate. ¿Tiramos os olhos e as orelhas de Kadafi¿, disse.

Ditador tem bens congelados A Suécia e Noruega anunciaram ontem que congelaram os ativos pertencentes ao regime líbio do coronel Muamar Kadafi, em aplicação das sanções decretadas pela União Europeia (UE). No caso da Suécia, os ativos totalizam 1,12 bilhão de euros (cerca de R$ 2,6 bilhões). O ditador também não poderá movimentar US$ 370 milhões na Noruega (em torno de R$ 614,5 milhões) ¿ valor que também ficará bloqueado. A União Europeia também chegou a um acordo para impor sanções ao principal grupo estatal de petróleo na Líbia, a National Oil Company (NOC). A medida visa aumentar a pressão sobre uma das principais fontes de recurso do governo de Kadafi.