Título: Crise não beneficiará a oposição, diz Garcia
Autor: Mazzini, Leandro
Fonte: Gazeta Mercantil, 23/03/2009, Brasil, p. A13

23 de Março de 2009 - Ao contrário do que sugere a imagem de carrancudo e briguento, Marco Aurélio Garcia é um sujeito ironicamente simpático. Instalado no terceiro andar do Palácio do Planalto, a poucos metros do gabinete do presidente Lula, o assessor especial da Presidência da República tem colecionado críticas e desafetos por suas ideias e práticas ligadas à política externa brasileira.

Em seis anos de governo, acostumou-se a reagir com vigor de acadêmico e audácia de político sem papas na língua, daí a fama, resultante de um meio termo entre a inabilidade política e o inconformismo com o que chama de homogeneidade da imprensa - "alguns órgãos pretendem ser o comitê central da oposição", diz. Nesta entrevista, concedida na quinta-feira, numa sala espantosamente sem livros (ele, como o presidente, está de mudança devido à reforma do Palácio do Planalto), põe o dedo em riste em direção à imprensa, à oposição e aos críticos. Empolga-se nos elogios a Lula ("irrepetível", derrama-se) e à ministra-candidata Dilma Rousseff. Diz: "Não esperem um Lula de saias. São estilos bem diferentes. Ela fará um governo melhor".

Gazeta Mercantil - Muitos avaliaram positivamente o encontro do presidente Lula com Barack Obama. Alguns citaram o papel do brasileiro como fiador da aproximação dos EUA com a América Latina. Mas houve quem dissesse que os resultados não foram práticos. Entre as duas análises, onde o senhor fica?

O presidente Lula não esteve lá como representante da América Latina. O Brasil não tem esse mandato e, caso ele se apresentasse dessa forma, estaria usurpando um direito internacional. Evidentemente Lula tem o sentimento muito forte da realidade latino-americana. Agora mesmo, com a perspectiva da reunião do G-20, tem consultado muitos presidentes. Mas seria impertinente e arrogante, da parte do Brasil, arvorar-se de uma condição de líder da região. Não é essa a preocupação. É evidente que a reunião com Obama tratou de temas latino-americanos. Eu diria que se centrou em três grandes assuntos. Um deles, a crise, foi o tema dominante no Salão Oval. Depois, no tête-à-tête que os dois tiveram, Lula falou um pouco sobre a situação brasileira, Obama falou sobre a situação americana e ambos examinaram questões mais gerais que afetam o mundo inteiro. Houve, também, uma discussão sobre temas latino-americanos.

Gazeta Mercantil - E sobre a América Latina, o que o presidente falou especificamente para Obama?

O fundamental colocado pelo presidente Lula é que houve um grande progresso na América Latina. Um progresso de natureza democrática. Uma preocupação grande de enfrentar de forma positiva as questões econômicas e sociais. Foi explicado o crescimento que a região tem tido nos últimos anos e que os EUA deveriam procurar relacionar-se com essa América Latina de uma forma distinta de outros momentos históricos. Usou explicitamente estas palavras: "não-ingerência" e "cooperação". Nesse cenário mais amplo foi que apareceu o problema de Cuba. Temos dito que Cuba é vista pelos países da região de forma diferenciada. Os EUA têm interesses econômicos em Cuba. E Cuba, vendo-se livre do bloqueio, poderá explorar uma série de potencialidades que têm mas que hoje são de difícil materialização.

Gazeta Mercantil - A mudança com Cuba seria a principal alteração de rota dos EUA com um governo Obama frente à América Latina?

Não. Em primeiro lugar vêm os grandes temas econômicos. O mundo está fortemente pendente das mudanças que vão ser feitas na área econômica. Isso aí é indiscutível, porque da reanimação da economia norte-americana dependerá muito a reanimação de várias economias do continente. No caso brasileiro, claro, gostaríamos que os EUA estivessem melhor para suportar mais, ter mais fluxo de investimentos, ter mais crédito no mercado. Já estão começando a melhorar um pouquinho. Acho que os EUA têm complexas equações econômicas para resolver.

Gazeta Mercantil - Uma dessas equações complexas é o comércio. Há uma grande expectativa de passarmos a um ambiente menos protecionista e de maior cooperação. O governo tem qual expectativa em relação a isso?

O governo brasileiro investiu fortemente, até o ano passado, na conclusão da Rodada de Doha (de liberalização do comércio). Estivemos próximos, mas havia alguns empecilhos. Aí a coisa foi para trás. Há opiniões de que a Rodada não resolve os problemas, que hoje é muito difícil de se completar, porque as situações recessivas são situações que suscitam o protecionismo. Os EUA têm medidas protecionistas em matéria de subsídios de agricultura, barreiras ao etanol, coisas desse tipo. São discussões que terão de ser feitas no decorrer do tempo.

Gazeta Mercantil - E quais são as outras questões importantes a que o senhor se referiu?

Há outras questões internacionais cruciais para os EUA: o Oriente Médio, aí incluindo Iraque, Palestina e Irã. Há também o Afeganistão, o problema das relações com a Rússia, com a China, com a Europa. Enfim, não é à toa que eles têm 15 mil diplomatas - nós temos aqui menos de 1,5 mil (risos).

Gazeta Mercantil - Os norte-americanos veem na região dois tipos de governos de esquerda. Um lado mais radical, envolvendo Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa. Outro mais moderado, com o presidente Lula à frente. E Lula seria um mediador da aproximação entre EUA e essa esquerda radical. Haverá uma distensão maior nesse relacionamento?

Há tantas esquerdas quantas unidades nacionais existirem. Isso é muito fácil de mostrar, é só não ter preguiça e analisar as situações históricas. Por que o fenômeno Chávez ocorre? Ocorre depois de uma crise de 20 anos no sistema político e econômico venezuelano. É interessante observar que, já nos anos 50 e 60, Celso Furtado criticava o modelo econômico venezuelano. Esse modelo foi o suporte material em torno do qual se assentou aquele sistema bipartidário e que levou a uma desagregação nos anos 90, cujo resultado final foi a eleição de Chávez. A Bolívia é outro caso. As pessoas falam da instabilidade boliviana. Nos quatro primeiros anos do governo Lula, estive 12 ou 13 vezes na Bolívia e encontrei quatro presidentes diferentes. Isso é que é instabilidade. O Equador teve oito presidentes em 10 anos. São situações completamente diferentes. No Uruguai há uma experiência mais próxima da brasileira. A Frente Ampla tem algo a ver com o PT porque lá, pelo menos, eles se institucionalizaram. E a nossa experiência é também original porque é tardia. Tínhamos uma esquerda muito frágil até os anos 80. Num determinado momento tivemos o Partido Comunista, que depois se descompôs. Tivemos os grupos armados, que foram massacrados e deixaram muita coisa além de uma herança moral e política. O PT é um fenômeno tardio. É bobagem querermos estabelecer parâmetros.

Gazeta Mercantil - Mas as comparações são inevitáveis. Há diferenças na ação de governo e nos discursos.

A radicalidade maior ou menor está ligada a circunstâncias históricas. Às vezes são situações mais radicais, não é o discurso que é radical. Talvez, com outro tipo de discurso, aquele projeto não pudesse prosperar. Qual foi a sabedoria do presidente? Sem ser um grande teórico, entendeu diferenças e procurou estabelecer boa relação. E disse: "Olha, por cima das nossas diferenças, que talvez sejam grandes, existe um objetivo a ser atingido, que é o objetivo da integração".

Gazeta Mercantil - E no Brasil, há politização na análise da política externa brasileira? Há uma ideologização?

Claro. Credita-se um componente ideológico como se as opiniões sobre esse componente ideológico não fossem elas também profundamente ideológicas. O fato de eu ser ligado a um partido político não me libera para procurar impor uma ideologia particular à minha conduta no aparelho do Estado. Não é o fato de o ministro Celso Lafer (ministro das Relações Exterior de FHC) ser filiado ao PSDB que vai me obrigar a dizer que o Brasil teve uma diplomacia tucana no governo anterior. O que estamos procurando é defender o interesse nacional e determinados princípios gerais da política. Um dos princípios que introduzimos com muita força foi perseguir com grande insistência a integração da região. Nós achamos que o destino do Brasil está muito vinculado ao destino da região. Temos um problema complicado, que é uma região ainda pobre e muito desigual. Esses problemas têm de ser enfrentados.

Gazeta Mercantil - O senhor acha que há uma má vontade da imprensa em relação à política externa, ao senhor e ao governo?

Não gosto muito de falar sobre a imprensa, embora eu tenha opiniões bem formadas. A imprensa pode falar mal de você, mas você não pode falar mal da imprensa. A imprensa não quer ser somente um quarto poder, ela quer ser o primeiro. Há duas coisas aí. Ouço rádio, leio oito jornais por dia e vejo bastante televisão. Tem muita gente que desinforma. A pessoa pode desinformar por duas razões. Ou ela não está informada, então é de certa maneira inocente. Ou pode querer desinformar porque está informada, mas não quer informar bem. Acho que existem os dois casos. Existe outra parte da imprensa que hoje se arvora uma função político-partidária. Isso não é um fenômeno novo. Esse fenômeno já foi detectado, em 1851, na França, por um analista ilustre da vida francesa naquela época, que atribuía a determinados órgãos de imprensa, um deles em particular, uma função partidária (risos).

Gazeta Mercantil - Victor Hugo dizia que os jornalistas eram os espadachins da reputação alheia.

Pois é. Mas aqui, mais do que isso, alguns órgãos de comunicação pretendem ser o comitê central da oposição. E, como todo bom comitê central, no velho estilo comunista, tem que ter também um departamento de imprensa e propaganda. E você vê que uma parte importante da pauta cada vez mais crescente da oposição brasileira define suas linhas de ação a partir do que sai em alguns órgãos de comunicação. Com isso não quero dizer que os órgãos de comunicação não devem ter opinião, mas eu gostaria que eles se assumissem mais. Eu disse uma coisa que irritou muito alguns jornalistas: que o meu ideal é o dos espanhóis. Os espanhóis podem levantar de manhã e comprar o ABC, que é um jornal de direita, monarquista, e podem comprar o El País.

Gazeta Mercantil - A imprensa brasileira é ambígua?

Acho que ela é muito homogeneizada. Mas só tem uma coisa pior do que uma imprensa parcial. É não ter imprensa. Então prefira que exista como tal. No caso brasileiro, a população não é idiota. Alguns inclusive chegam a dizer: "Lula ganhou a eleição porque comprou os eleitores com o Bolsa Família". Não é. Eu aprendi que há uma sabedoria popular, mesmo quando essa sabedoria popular se exerceu contra as minhas ideias. Mesmo quando eu caracterizava certas atitudes da sociedade como atitudes conservadoras. Esse conservadorismo, no entanto, tinha profundas raízes e tinha justificativas. Aprendi muito a tentar escutar essas vozes que vêm da sociedade. De baixo ou de cima, não importa. Acho que uma parte da imprensa que não fizer isso vai ficar falando sozinha.

Gazeta Mercantil - Há dados que já mostram certa recuperação com a crise, mas os efeitos, para 2009, ainda são muito incertos. Qual o impacto que a crise terá sobre a sucessão do presidente Lula?

Acho que o impacto não vai estar tão ligado ao problema da crise, porque ela impacta a todos.

Gazeta Mercantil - Mas a oposição não sai beneficiada de uma crise de governo decorrente da crise?

Governo e oposição saem chamuscados pela crise. Acho que o que vai pesar, fundamentalmente, para os candidatos do governo, será a forma pela qual o governo vai enfrentar a crise. Entre dezembro e janeiro, o presidente subiu alguns pontos na pesquisa, e a crise já estava forte naquele momento. E uma das análises que foram feitas para explicar essa mudança foi exatamente a de que a subida do presidente estava diretamente ligada à forma pela qual ele estava enfrentando.

Gazeta Mercantil - Os entraves do PAC também são um problema. O ritmo das obras não é o que se esperava e do que se precisa.

Sim, mas isso se resolve porque a ministra é muito rigorosa (risos).

Gazeta Mercantil - Falando na ministra Dilma Rousseff, o senhor acredita que o presidente Lula acertou na escolha dela para sucedê-lo?

Sim. Aliás, acertamos, porque a minha escolha seria a mesma.

Gazeta Mercantil - Como ela está sendo preparada para enfrentar a sucessão?

A Dilma é uma pessoa de enorme qualificação intelectual. Se você for conversar com ela, vai ficar surpreendido como ela pode discorrer com facilidade sobre temas econômicos, sobre pintura, sobre literatura.

Gazeta Mercantil - Teremos na campanha um "Lula de saias"?

Não, eles são muito diferentes. É outro perfil. O Lula é irrepetível. É um fenômeno muito particular. Não vou dizer se é melhor ou pior. Acho que a Dilma pode fazer um governo melhor do que o do Lula por uma razão: porque antes houve um governo Lula. Acho que ela tem todas as condições. Ela foi uma auxiliar desde o tempo do Ministério de Minas e Energia até a sua ida para a Casa Civil. E é interessante porque o Lula a tinha detectado com grande antecedência.

Gazeta Mercantil - Quando ele a descobriu?

Não sei dizer exatamente quando, mas deixa eu contar um episódio que é significativo. Eu fui uma das primeiras pessoas a serem convidadas para ir para o governo. Poucos dias depois da eleição o presidente Lula pediu que eu viesse aqui e me convidou. Eu disse: "Claro, não tenha dúvida, estou aí para o que você me pedir". E nós fomos lá na Granja do Torto, ele estava na beira da piscina, sofrendo com a bursite. E aí o primeiro nome que ele me disse que estava pensando para o Ministério foi a Dilma Rousseff no Ministério de Minas e Energia. Foi antes da posse. Uma semana, talvez menos. Ela esteve na equipe de transição, mas eu a conhecia porque a Dilma foi secretária de Energia do governo do Olívio Dutra no Rio Grande do Sul. E eu a conhecia muito de amigos comuns. Eu conheci a Dilma há muitas décadas por referências. Ela não é uma pessoa anódina, sempre sobressaiu entre os seus pares.

Gazeta Mercantil - A dúvida que sempre surge é o traquejo político necessário a uma candidata e a um governante. Como ela tem se preparado para isso?

Você acha que a Casa Civil é só tecnicalidade? A Dilma é uma pessoa de muita habilidade. Ela tem o estilo diferente do Lula. Por isso eu digo: não se pode pedir o Lula de saias. Não existe o Lula de saias.

Gazeta Mercantil - Cede-se demais no governo?

Acho que tem gente que cede demais (risos). A questão é que tem que ceder o que é necessário. Há momentos em que é preciso ceder para mais adiante poder avançar. A inteligência política, que é uma inteligência diferente da inteligência de um intelectual ou de outros tipos, é isso. A política não pode sobreviver sem ideias. Agora, a política não se deduz das ideias. Os intelectuais muitas vezes se dão mal na política quando pretendem exclusivamente transformar suas ideias em iniciativas de ação.

Gazeta Mercantil - Mas se cede em nome da governabilidade, por exemplo...

Em prol da governabilidade acho que temos feito os acordos que tínhamos que fazer. Aí você me dirá: "Mas tem aquele cargo, aquela coisa". Isso aí, até que tenhamos um sistema político mais refinado, mais depurado, nós não vamos resolver essa questão. Isso aí não é culpa de um partido A, B ou C. Acho que a reforma política é uma questão fundamental. Não precisaria fazer uma megarreforma, mas que avançássemos em alguns pontos da reforma política, como avançamos no sistema eleitoral brasileiro. Os problemas que temos em outros países, de fraude eleitoral, no Brasil praticamente desapareceram. Tínhamos de fazer uma evolução no sistema político. Alguma coisa já houve como tempo de televisão, proibição de propaganda paga, entre outras coisas.

Gazeta Mercantil - Mas o governo do PT não tem se esforçado muito pouco para mudar esse estado de coisas?

Acho que o governo não tem muito o que fazer nisso. Acho que o PT poderia ter feito mais. Nós fizemos um esforço no ano passado, tentamos resolver e quebramos a cara. Aí não é problema do PT, o PT não é majoritário.

(Gazeta Mercantil/Caderno A - Pág. 13)(Leandro Mazzini e Rodrigo de Almeida - Colaborou João Batista de Araújo)