Título: Brasil pode oferecer uma resposta para a crise
Autor: Severo,Rivadavia
Fonte: Gazeta Mercantil, 22/04/2009, Brasil, p. A11

Brasília, 22 de Abril de 2009 - Escalado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para ajudar a formular e debater um novo modelo de desenvolvimento para o País, o Secretário Especial de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, ocupa uma austera sala na Esplanada dos Ministérios, com brasões alusivos à República e uma imagem de José Bonifácio. Lá, o ministro recebeu a Gazeta Mercantil para uma conversa de pouco mais de uma hora, e declarou que as medidas contracíclicas adotadas pela equipe econômica do governo são apenas a base das ações do executivo para enfrentar a crise e que é preciso avançar mais. Falou sobre a necessidade de criar um novo modelo econômico global e que o Brasil pode ser o agente disso, além de comentar os primeiros passos de seu "pupilo", o presidente norte-americano Barack Obama.

Gazeta Mercantil - Que ações o governo deve tomar para enfrentar a crise internacional?

Precisamos reorientar o projeto nacional. A crise é um momento privilegiado para acelerar essa reorientação, muito mais do que uma ameaça. Nada é mais assustador na discussão mundial da crise do que a pobreza das ideias. A rigor a única ideia amplamente difundida no mundo é o keneysianismo mumificado. É uma luz fraquinha para a dimensão da tarefa que estamos enfrentando. Há duas respostas principais à crise que tem emergido do mundo até agora. Respostas práticas e respostas intelectuais. No Atlântico Norte: Estados Unidos e Europa Ocidental, o foco da resposta está no resgate dos bancos falidos, regulação dos mercados financeiros e adoção de políticas fiscais e monetárias. É o keynesianismo vulgar. E no Nordeste Asiático, apesar da discussão sobre a necessidade de substituir o mercado exportador por mercado interno existe o protecionismo.

Gazeta Mercantil - Mas os americanos não estão mais preocupados com ajuda a bancos e a economia real, enquanto os europeus...

Há uma diferença entre os europeus e os americanos. Os europeus enfatizam a tarefa regulatória, os americanos com mais realismo, estão mais preocupados com os resultados imediatos. Mas é uma diferença apenas relativa. Eles estão na mesma direção geral. O discurso deles suprime três camadas profundas mais importantes. Da abordagem desses temas depende a eficácia dos governos em relação aos temas mais superficiais.

Gazeta Mercantil - Quais são esses problemas estruturais da crise econômica mundial?

O primeiro tema mais profundo é a necessidade de enfrentar e superar os desequilíbrios estruturais na economia mundial, entre os países deficitários em comércio e poupança, a começar pelos Estados Unidos e os superavitários como a China. O motor do crescimento da economia global tem sido o superávit e a poupança chinesas e os déficits e a despoupança americana. Esse motor está quebrado. Ele não pode ser consertado. O segundo tema sonegado do debate é a necessidade de entender a regulação dos mercados financeiros. Hoje a produção, em larga medida, se auto-financia. Todos os estudos empíricos sugerem que bem mais de 80% do financiamento da produção em todas as grandes economias de mercado se baseia nos lucros retidos. O sistema financeiro é relativamente indiferente a produção.

Gazeta Mercantil - Então ajudar bancos não vai resolver a crise?

Temos que inovar nos arranjos de governo a relação entre o sistema financeiro e a produção. O objetivo dessas inovações seria assegurar que mais da poupança de longo prazo fosse canalizada para investimentos produtivos de longo prazo. O terceiro tema suprimido do debate é o vínculo entre recuperação e redistribuição da renda. Os americanos que são o epicentro da crise construíram na segunda metade do século XX um mercado de consumo em massa, o que requer, em princípio, popularização do poder aquisitivo e redistribuição progressiva da renda. Isso não houve nos Estados Unidos. Houve o oposto. Nas últimas décadas do século XX, houve uma violenta concentração da renda e da riqueza. Como então conseguiram eles reconciliar o mercado de consumo em massa com a redistribuição regressiva da renda, parte da explicação está na sobrevalorização dos imóveis. Os imóveis sobrevalorizados funcionaram como um lastro para o violento endividamento das pessoas físicas e a pseudodemocratização do crédito fez às vezes da redistribuição progressiva da renda que não houve. E esse mecanismo está destroçado.

Gazeta Mercantil - O que pode substituir a desgastada relação comercial entre China e os Estados Unidos na economia global?

Os americanos não podem mais viver do dinheiro dos outros. Vão ter que poupar muito mais. Vão ter que ter déficits muito menores. Isso vai exigir uma outra política nos Estados Unidos e na China ao mesmo tempo. Nos Estados Unidos uma política focada na economia real. É nisto que estou querendo chegar.

Gazeta Mercantil - O senhor estava dizendo que o Nordeste Asiático tem outra alternativa para enfrentar a crise. Onde entra o Brasil nesse jogo?

No Nordeste Asiático eles estão montando uma segunda resposta. Não é a mera substituição do mercado exportador pelo mercado interno. O verdadeiro foco é o protecionismo. A tendência de reorganizar o foco semi-autárquico dentro da economia global. Como fizeram no século passado, em resposta à crise da década de 30. Nós, no Brasil e na América do Sul, teríamos todas as razões e condições para começar a exportar uma terceira resposta. Diferente da resposta que está prevalecendo no Atlântico Norte e no Nordeste Asiático. Uma resposta que mantenha o foco na economia real. Vejo na crise uma oportunidade para ampliar a nossa base produtiva e democratizá-la ao mesmo tempo.

Gazeta Mercantil - Mas afinal, que caminho o Brasil está trilhando para enfrentar a crise?

O que vou dizer não é a posição oficial do governo brasileiro, mas também não é uma posição puramente pessoal. É uma tentativa de interpretar o que me parece ser a vertente principal de opinião que está emergindo dentro do governo. Embora os pormenores sejam controvertidos. A resposta se desdobra em três planos. Uma política contracíclica forte, o produtivismo democratizante e iniciativas institucionais para reorganizar o sistema financeiro.

Gazeta Mercantil - Quais os pontos principais da política contracíclica do governo?

Ela tem três componentes convencionais. A manutenção e fortalecimento da renda popular, cujos instrumentos principais de curso prazo são o salário mínimo e programas de distribuição de renda. A aceleração dos investimentos públicos, do gasto público em geral e dos investimentos privados com estímulo público. E acelerar a baixa dos juros. Sempre lembrando que no Brasil o juro real é superior a taxa média de retorno dos negócios. Portanto, nesta circunstância, toda a atividade produtiva é, a rigor, irracional.

Gazeta Mercantil - Como reorganizar o sistema financeiro no Brasil voltado para a produção?

No Brasil nunca tivemos uma rede genuinamente local, descentralizada, como os Estados Unidos construíram na primeira metade do século XIX. Na nossa realidade quando alguém deposita dinheiro em um banco privado nacional no Piauí é muito provável que aquele dinheiro seja investido em São Paulo. Não podemos ter de um dia para outro instituições locais de crédito, mas o que podemos fazer é tomar medidas regulatórias que façam com que, pelo menos, parte desse dinheiro seja investido naquele estado ou pelo menos naquela região. E com isso assegurar uma base para a resposta à crise que seja não só socialmente ampla, mas também territorialmente ampla. Eu vejo esses eventos como uma amplificação da política contracíclica convencional. Mas ao mesmo tempo como uma fonte para um terceiro plano de ações. São ações que prefiguram um novo rumo de desenvolvimento. Rumo baseado na ampliação de oportunidades econômicas e educativas.

Gazeta Mercantil - Que exemplo o senhor daria disto?

Vou dar dois exemplos, um agrícola e outro sobre relações de trabalho capital. Capital e trabalho tem três problemas: O primeiro é que quase a metade da população economicamente ativa está no mercado informal, trabalhando nas sombras da ilegalidade. É uma catástrofe. É preciso uma desoneração radical da folha de salários, ainda que com preservação de direitos financiados porém pelos impostos gerais. O segundo é que na economia formal uma parte crescente de trabalhadores está em situações de trabalho temporário, terceirizado ou autônomo. Estes também estão fora da proteção eficaz da lei. Se acrescentarmos essa fatia crescente da economia formal a metade informal é a vasta maioria do povo brasileiro que está fora da lei, ainda que não seja ilegal.

Gazeta Mercantil - O que o governo planeja para resolver essa questão

trabalhista?

Temos que construir uma proposta para definir, ao lado do regime existente das leis trabalhistas, um segundo regime, um segundo grupo para proteger, organizar e representar esses trabalhadores. Eu já propus ao presidente em colaboração com o Ministério do Trabalho. Toda a tendência das lideranças sindicais, da esquerda, é negar esse problema. Uma política de avestruz, atribuir isso só a evasão fraudulenta das leis. Quando na verdade é o produto de uma mudança profunda nos paradigmas de produção que tende a ser acelerado sobre as circunstâncias da crise. É preciso domar isso. Os dois discursos sobre o trabalho que existem no Brasil, da flexibilização e do direito adquirido não fazem isso. A flexibilização é interpretada pelos trabalhadores como um eufemismo para descrever a destruição dos direitos deles. E o direito adquirido resolve o problema da minoria que está dentro, mas não da maioria que está fora. E em terceiro lugar, há meio século, de forma descontínua, mas persistente, cai a participação do salário na renda nacional. A parte do bolo que vai para o capital aumenta e a parte que vai para o trabalho diminui. É preciso reverter isso por iniciativas institucionais e não apenas por políticas que procuram influenciar o salário nominal, como é a política de salário mínimo. E o ponto de partida natural é regular em lei, melhor do que está regulado agora, o preceito constitucional da participação dos trabalhadores nos lucros e resultados das empresas. Garantido contra o risco de manipulação pelo acesso amplo de sindicatos à contabilidade das empresas.

Gazeta Mercantil - O senhor acredita que isso possa ser feito ainda no governo Lula?

Eu já pus nas mãos do presidente uma minuta dessa regulação em lei, depois de ter discutido amplamente com as centrais sindicais. São exemplos de uma prática que eu chamaria a inovação institucional a serviço da democratização da economia de mercado. Não é apenas a regulação da economia de mercado. É a democratização dela por meio de inovações nas instituições que definem a economia de mercado. Portanto, essa é a minha concepção do que poderia ser a resposta brasileira ou sul-americana à crise. Não é uma resposta meramente financista e fiscalista. Ele tem esses três degraus: o degrau da política contracíclica, o degrau das iniciativas de produtivismo democratizante e o degrau das inovações institucionais a serviço da democratização da economia de mercado.

Gazeta Mercantil - A sua posição frente a crise tem uma boa acolhida dentro do governo. Do presidente Lula? Da Casa Civil ?

Eu tenho proposto essas ideias como um desdobramento de um discurso que o presidente vem fazendo. Que é o discurso de priorizar a economia real. E ver a crise como oportunidade para um avanço. Agora não posso pretender que o que acabo de lhe dizer seja uma mera transcrição das ideias do governo. Eu fiz um esboço em uma determinada direção. Tenho discutido com o presidente e ministros e começo uma discussão no Congresso. Mas antes de eu responder sobre a concordância ou discordância, há o problema preliminar que é o esclarecimento das ideias. Acredito que estamos em um estágio muito preliminar da formulação dessa posição. Há um desejo muito forte no Brasil. Não só na cabeça do presidente. Nos quadros dirigentes do país, no empresariado, de dar a volta por cima, de dar uma resposta produtivista, criadora e audaciosa, como o Brasil deu no século passado na crise da década de 30.

Gazeta Mercantil - E no curto prazo. Eu sei que não é a sua área, não é a sua função dentro do governo. Mas as ações que o governo brasileiro tem tomado frente a crise têm surtido os efeitos desejados?

No Brasil eu vejo uma grande abertura. A resposta que lhe dei da maneira de equacionar, solucionar a crise é uma resposta de curto prazo, tanto quanto de longo prazo. O problema não é esse. É que exige uma tomada de posição muito contundente. Eu não posso pretender que essa posição já tenha sido cristalizada na definição que eu proponho. Mas também nada cristalizou contra essa proposta. Estamos em uma situação relativamente aberta. O que falei é algo intermediário entre a minha preferência e a minha interpretação da posição que está emergindo. Eu lhe dei uma interpretação esperançosa.

Gazeta Mercantil - O senhor está dentro do governo. A percepção que se tem de fora é que o governo tem tomado medidas emergenciais que estão socorrendo alguns setores. Mas fica difícil ver os efeitos na economia real?

Concordo. O sistema é difícil de conciliar. O que digo é que não seria justo interpretá-lo como apenas um amontoado de respostas casuísticas. As respostas que estão sendo dadas em maior ou menor grau, claramente manifestam esse intuito de aproveitar a crise para criar uma base produtiva e democratizá-la ao mesmo tempo. O que ocorre é que entre o mundo das ações concretas e essa vontade geral, os conceitos não saem já organizados. E é natural que não sejam. Não há outro lugar no mundo onde estejam. Isso é um esforço contra a maré das ideias dominantes.

Gazeta Mercantil - Como o senhor que foi professor do presidente Barack Obama está vendo as suas iniciativas contra a crise?

Muito do que Obama tem dito vai na mesma direção do que tem dito o presidente Lula. O mais importante nisso tudo é a economia real. Tudo o mais é acessório a isso. Por outro lado, ao compor a sua equipe econômica, chamou gente que tem ideias muito convencionais. Eu os conheço. Não são pessoas com visões alternativas e algumas delas sofrem de defeitos muito comuns que é só aprender aquilo que já sabem. O presidente Obama tem uma visão mais ampla, mas não é um economista. Os Estados Unidos estão em um momento de grande inflexão histórica. Por baixo há um movimento intenso. E o presidente, inteligente e intuitivo, previsivelmente oscilará entre o horizonte doutrinário circunscrito pelos mandarins econômicos e a inquietude e a impaciência do país embaixo. É a combinação entre políticas e ideias que pode influenciar esse movimento pendular. Não basta querer reorientar é preciso saber como. As ideias não aparecem quando se quer que elas apareçam. Não é convocando reuniões de poderosos do mundo que se convocam as ideias. As ideias não vêm para esses eventos.

Gazeta Mercantil - Como o Brasil pode aproveitar essa aproximação entre o presidente Lula e Obama?

O Brasil é essencialmente vitalidade. É vida. Esse é o ponto de conexão entre o Brasil e os Estados Unidos. Dois países extremamente desiguais, cheios de vida, em que as pessoas comuns continuam a julgar que tudo é possível. Mas nos metemos em uma camisa de força que suprime essa vitalidade ao invés de instrumentalizá-la. A crise eu vejo como um momento propício para quebrar a camisa de força. Para nós que queremos essa reorganização do País, o nosso exército é a crise.

(Gazeta Mercantil/Caderno A - Pág. 9)(Rivadavia Severo)