Título: Interesse público e propriedade intelectual
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Fonte: Gazeta Mercantil, 23/09/2004, Opinião, p. A-3

O teor do discurso do representante adjunto de Comércio dos Estados Unidos, Peter Allgeier, proferido na terça-feira na Câmara Americana de Comércio, em São Paulo, não deixa dúvidas sobre o caráter recorrente das diferenças nas negociações diplomáticas referentes ao comércio e ao desenvolvimento que separam Brasil e EUA - e, por extensão, países em desenvolvimento e países desenvolvidos, em geral - nos foros multilaterais. Diferenças que foram objeto de tratamento exaustivo na XI Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento, realizada em junho em São Paulo, e que também se expressam em cores fortes no discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na abertura da 59Assembléia Geral das Nações Unidas, em defesa de uma nova ordem econômica mundial.

O representante norte-americano afirma que seu governo sente-se nada menos que "perplexo" ante a proposta do Brasil e da Argentina encaminhada em 27 de agosto à Assembléia Geral da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI)-, a realizar-se em Genebra entre 27 de setembro e 5 de outubro -, de elaboração de um plano para o desenvolvimento no âmbito da OMPI. O plano preconiza o reconhecimento do direito à quebra de patente no caso de prevalência do interesse público.

A divergência é de princípio. Opõe, de um lado, os que advogam a prevalência da soberania do mercado e, de outro, os que se recusam a dissociar comércio e desenvolvimento - o comércio no seu papel de instrumento do desenvolvimento.

Observe-se que não é uma ou outra sugestão contida no plano que provoca perplexidade no representante dos EUA. Por detrás da ironia, da causticidade, da ameaça e do menoscabo para com o esforço exportador do Brasil, contidos em seu discurso, o que se enxerga é a rejeição liminar à idéia de vincular o tema propriedade intelectual a qualquer plano, menos ainda a um plano de desenvolvimento, processo que é ignorado pelos ideólogos do livre mercado.

Assim como ocorre com a globalização - como enfatizou o presidente Lula em seu discurso na ONU - também o papel da propriedade intelectual e seu impacto sobre o desenvolvimento devem ser cuidadosamente avaliados caso a caso. A proteção da propriedade intelectual é um instrumento de política geral cuja utilização pode aportar vantagens e custos, variáveis segundo o nível de desenvolvimento dos países.

É dizer que a questão não pode ser abordada fora do contexto econômico, social, político e histórico em que se dá o processo singular de desenvolvimento de cada nação. É preciso, pois - lê-se no anexo do plano apresentado à OMPI - , tomar medidas para que os custos da proteção não superem as suas vantagens.

O que caracteriza a ampliação do fosso entre países ricos e pobres é o crescente "déficit do conhecimento", ao tempo em que se sabe que a inovação tecnológica e a ciência são consideradas como componentes fundamentais do progresso material e do bem-estar. "Conhecimento" é o bem mais escasso na profusão de bens ofertados no "livre" mercado. Bens intangíveis, como as tecnologias sensíveis que asseguram vantagens competitivas a quem os detém, não estão acessíveis a quem se dispõe a adquiri-los, qualquer que seja o preço.

Por esse motivo, os signatários da proposta, entre outros países, embora reconheçam na propriedade intelectual um instrumento de promoção da inovação tecnológica, advertem que a propriedade intelectual não deve ser considerada como um fim em si, razão por que a harmonização de sua legislação com vistas ao fortalecimento das normas de proteção não pode deixar de considerar o nível de desenvolvimento de cada país. É dizer que a aplicação dos direitos de propriedade intelectual deve ser apreendida no contexto mais amplo do interesse social e do desenvolvimento.

No cerne do debate está a Declaração de Doha, no âmbito da Organização Mundial do Comércio, segundo a qual a proteção da propriedade intelectual deve ser implementada de modo a favorecer a realização dos objetivos de saúde pública em todos os países e não deve opor-se a eles.

No anexo ao plano, Brasil e Argentina propõem que se cuide de prevenir práticas abusivas que restringem a concorrência e que se adotem medidas corretivas contra práticas prejudiciais ao comércio e à transferência de tecnologia. Sugerem que tais disposições, já constantes da Declaração de Doha, sejam incorporadas ao quadro de trabalho da OMPI. "A desatenção para com a defesa do interesse geral compromete a credibilidade do sistema de propriedade intelectual", concluem, com razão, os signatários do documento. kicker: Para "perplexidade" dos EUA, o Brasil defende o direito de cada país de adotar políticas específicas sobre propriedade intelectual