Título: Transposição de rio, questão política
Autor: (Gazeta Mercantil/Caderno A - Pág. 3)(
Fonte: Gazeta Mercantil, 23/09/2004, Opinião, p. A-3

Na década de 60, era comum a falta de água na cidade de São Paulo e cercanias. Para resolver o problema "de uma vez por todas", o governo do Estado de São Paulo embarcou na construção de um megaprojeto de transposição de águas da bacia do Rio Piracicaba para o Alto Tietê por meio da Serra da Cantareira. Em agosto de 1974 foi concedida à Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) a outorga para uso das águas do Piracicaba por 30 anos. Naquele tempo o processo era muito simples: em um gabinete fechado em Brasília era tomada a decisão. E era cumprida.

Hoje, trinta anos mais tarde, a situação é completamente diversa. A gestão de recursos hídricos no Brasil sofreu uma evolução fantástica em termos de participação pública. A renovação da outorga da Sabesp foi decidida de forma pactuada e dois comitês de bacia hidrográfica (Piracicaba e Alto Tietê), que contam com a participação de representantes de governos municipais, estaduais, usuários, universidade e ONGs, tiveram um papel fundamental no processo de decisão.

A Lei de Águas impõe que a gestão de recursos hídricos tenha como unidade de planejamento a bacia hidrográfica, onde se misturam rios da União e dos estados. Alguns dos rios, nos quais a Sabesp tem reservatórios construídos, são de responsabilidade da União e outros, de responsabilidade do governo paulista. Em vez de decidir sozinha, a Agência Nacional de Águas (ANA) articulou-se com os governos de São Paulo e Minas Gerais e com o Comitê das Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, assinando um convênio de integração em que as partes se comprometem a gerir os recursos hídricos de forma harmônica.

Essa história de sucesso indica que há esperança para avançar na discussão da transposição de águas em outras regiões do País. No caso da transposição do Rio Piracicaba, foram geradas informações confiáveis e estudos técnicos de alto padrão para orientar as decisões do comitê. Deve-se reconhecer que o problema da transferência de água entre bacias hidrográficas ganhou, ao longo das décadas, um caráter eminentemente político. Entretanto, quando os dados e fatos técnicos são apresentados de forma transparente e honesta o chamado conflito cognitivo desaparece e o caminho para o consenso fica mais fácil.

A Política Nacional de Gestão de Recursos Hídricos definida na Lei n 9.433/97 define a bacia hidrográfica como unidade de planejamento e gestão. O comitê de bacia é órgão responsável pela aprovação do plano da bacia onde são definidas as prioridades de obras e ações no âmbito da bacia hidrográfica e tem o papel de negociador, com instrumentos técnicos para analisar o problema dentro de um contexto mais amplo. Todavia, a outorga de direito de uso da água na bacia é de responsabilidade dos órgãos gestores estaduais e da ANA. A deliberação sobre ações que transcendem o âmbito da bacia é de responsabilidade do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, órgão superior do sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos. Assim, a análise da transposição de águas entre bacias passa por um conjunto de órgãos do sistema e requer boa vontade e espírito público de todos os envolvidos.

Os critérios para outorga, cobrança e fiscalização do uso das águas na bacia serão os mesmos para os rios de responsabilidade da União, adotados pela ANA, e do estado, adotado pelos departamentos responsáveis. No caso da outorga do Sistema Cantareira, o processo de decisão pactuado permitiu que a ANA avançasse ainda mais, baixando uma resolução que delega aos órgãos estaduais a competência para autorizar a cessão do direito de uso da águas na bacia dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí. Esta é uma clara demonstração do espírito republicano da Federação. Diferentemente da década de 70, desta vez a outorga do Sistema Cantareira não saiu de Brasília. Foi por ato do superintendente do Departamento de Águas e Energia Elétrica do Estado de São Paulo (Daee).

Outra novidade bastante auspiciosa para a população da região metropolitana de Campinas é que a ANA, em conjunto com o Daee, baixou uma resolução para orientar a operação do Sistema Cantareira, na qual ficam garantidos cinco m3/s para a bacia do Piracicaba. Esta era uma antiga demanda do comitê e do Consórcio Intermunicipal da Bacia do Piracicaba, uma organização não-governamental muito ativa, ligada aos municípios da bacia, que pode ser atendida com base em análises técnicas e ouvindo todos os atores. A resolução ANA/Daee levou em conta também os riscos hidrológicos do sistema para suportar a situação mais crítica observada nos registros históricos dos últimos 73 anos. Além disso, a resolução possibilita a criação de um "banco de águas" onde cada usuário, Sabesp e comitê da bacia podem "economizar" água nos reservatórios quando não precisar usar a quantidade a que tem direito. Essa água economizada poderá ser utilizada em situações de escassez.

kicker: A transposição do Rio Piracicaba gerou estudos técnicos e informações de alto padrão