Título: Uma silenciosa admiração
Autor: Pariz, Tiago; Iunes, Ivan; Kleber, Leandro
Fonte: Correio Braziliense, 31/03/2011, Política, p. 2/3

Moradores de vários locais do DF e do Entorno acompanharam com solene reverência o adeus ao ex-vice-presidente, a quem definiam como "valente", "guerreiro", "honesto" e "elegante"

Não havia choro nem desespero. Ninguém fez discurso, nem se descabelou, nem cantou nem se ajoelhou nem rezou. Não havia comoção na visitação pública ao corpo do ex-presidente José Alencar, no Salão Nobre do Palácio do Planalto. Havia doce tristeza, calma despedida, silenciosa admiração pelo homem que, nas palavras de muitos dos que estavam na fila, era ¿corajoso¿, ¿valente¿, ¿guerreiro¿, ¿simpático¿, ¿honesto¿, ¿sorridente¿, ¿elegante¿, ¿charmoso¿. Havia outro ingrediente, bem brasileiro: discreta alegria, quase invisível celebração de vida.

Para quem chegou bem cedo, a espera durou pouco mais de quatro horas. O primeiro visitante chegou às proximidades do palácio por volta das 7h e a fila começou a andar em direção à rampa às 12h45. Nesse período, perto de 300 pessoas colaram-se umas às outras até que lhes fosse permitido ver o corpo de Alencar.

Havia uma grade, de não mais de um metro de altura, separando a entrada do povo da entrada das autoridades. Mas não era apenas ela que delimitava territórios. Era, por exemplo, o modo como pisavam no chão presidencial. Políticos e credenciados davam passos firmes em direção ao hall de entrada. Os visitantes descredenciados chegavam vagarosamente, sem saber exatamente como pisar naquele piso modernista. Por alguma estranha razão, os políticos não olhavam para os lados ¿ e a menos de meio metro deles estava uma longa fila de olhos fixados neles. ¿Nem pra acenar pra gente? Depois que passa a eleição, o povo é tratado como lixo¿, comentou o maranhense Clebio de Oliveira Ferreira, 28 anos, ao lado de seu amigo Joel de Queiroz Damasceno, 15 anos, moradores de Valparaíso-GO que, cedinho, decidiram pegar o ônibus cheio e demorado para ver o corpo do ex-vice-presidente.

Não havia excitação nem revolta, apenas uma certa curiosidade, como quem tenta reconhecer algum político importante. ¿Esses aí deveriam seguir o exemplo de Zé Alencar. Ter ele como mestre, aprender com ele a ser honesto¿, convocava o motorista Fernando Fernandes, 45 anos, empunhando uma faixa exaltando as qualidades do morto.

Contraste No corredor das autoridades, os homens eram mais gordos, mais brancos e mais altos. No corredor do povo, mulheres e homens compunham uma amostra mais parecida com a mestiçagem e a mistura brasileira. Havia morenos, mulatos, negros, cafuzos, velhinhos e velhinhas, adolescentes (não muitos), servidores públicos com o crachá da repartição, grupos de auxiliares de serviços gerais terceirizados, deficientes físicos. Muitos vinham de cidades-satélites ou do Entorno. Havia visitantes de outros estados que aproveitaram para fazer a visita histórica.

No corredor dos que esperavam pela visitação pública, havia poucos de terno e gravata, dentre eles Isaías Alves Cardoso, 46 anos, auxiliar de copeiro da Delegacia de Polícia de Santo Antônio do Descoberto. Ocupava os primeiros dois metros da fila e dizia ter sido o primeiro a chegar. Isaías gosta de acompanhar cerimônias fúnebres de gente importante. ¿Vim no velório de Luiz Eduardo Magalhães, agarrei na barriga do Antônio Carlos Magalhães e abracei doutor Roberto Marinho. Ele levou o maior susto¿, conta Isaías.

Outra diferença entre os do corredor das autoridades e os do corredor do povo: na fila da visitação pública não havia cerimônia nem expressões contritas. Podia-se ver vários pequenos grupos conversando, gente que havia acabado de se conhecer e já se tratava como parceiros de truco. ¿Nos conhecemos no ponto de ônibus, vindo pra cá e já somos velhos amigos¿, dizia o paraibano José Eures, 53 anos, sobre seu mais novo amigo, o mineiro José Domingos Ferreira, 85 anos.

Xará Amigos uns dos outros e amigos do morto, porque com o povo brasileiro é assim. ¿Vim ver o meu xará. Já que não o conheci vivo, vou conhecê-lo morto¿, dizia, sorrindo, o paraense José de Alencar Souza dos Santos, 52 anos, anel de ouro no dedo mindinho, para quem a morte não é nenhum bicho de sete cabeças. ¿Não adianta ter medo que ela vai te pegar, mas também não precisa correr atrás dela.¿ A petista ¿e lulista ainda por cima¿ Eurídice Mendes da Rocha, de 65 anos, também não tem medo de morrer. ¿Só tenho medo de escorregar no caminho daqui pra lá¿, ela disse, de sorriso aberto.

O povo que foi se despedir de José Alencar não tem medo da morte e se orgulhou de ter pisado no mármore branco do palácio: ¿Mãe, estamos subindo a rampa¿, dizia Maria Solange, como quem se certifica da inédita experiência. ¿Bichinho, ele queria ter dançado com a Dilma¿, lamentava a mãe dela, Antônia Pereira Damasceno e Silva, 69 anos, piauiense, que só criou coragem para fazer uma cirurgia de catarata depois que acompanhou a valentia do ex-vice-presidente. ¿Está tão amarelinho, tadinho¿, condoía-se Eurídice Mendes da Rocha depois de passar a um metro dos pés do corpo do herói.

José Alencar era o filho, o pai, o amigo, o parceiro de truco de todos aqueles ali. Porque entre os brasileiros é assim, com o coração.