Título: Doença do século passado, tuberculose ganha nova droga
Autor: Tavares, Carlos
Fonte: Correio Braziliense, 31/03/2011, Saúde, p. 29

Brasil reduz apenas 4% número de casos novos e ainda patina em 75% de cura de um mal que mata cerca de 2 milhões de pessoas no mundo a cada ano. Farmanguinhos desenvolve medicamento destinado a reduzir abandono do tratamento

Já se passaram dois séculos desde a crença de que ser romântico e intelectual significava ser magro e exibir olheiras; de que ser poeta, boêmio, inteligente e sensível era quase sinônimo de ser doente. Ninguém melhor do que o brasileiro Casimiro de Abreu, representante da segunda geração dos românticos, para encarnar o mito do poeta tísico. ¿Eu desejo uma doença grave, longa mesmo, pois já me cansa essa monotonia da boa saúde. (¿) Queria ir definhando, liricamente, e depois expirar no meio de perfumes (¿)¿, escreveu ele a um amigo, em outubro de 1858, como se estivesse prevendo que dois anos após a carta morreria, tuberculoso. Tinha apenas 21 anos, o autor de Primaveras e dos célebres versos: ¿Oh! que saudades que tenho/Da aurora da minha vida,/Da minha infância querida/Que os anos não trazem mais! (¿)¿, do poema ¿Meus oito anos¿.

Se durante o século 19 era chique ou moda morrer de tuberculose (TB) e a doença era fonte de inspiração para romancistas e dramaturgos, a realidade no mundo atual é outra. A doença ainda mata cerca de 2 milhões de pessoas por ano no planeta ¿ ou 4,7 mil por dia ¿ e provoca no Brasil uma de suas piores dores de cabeça em termos de saúde pública.

Com a chegada do século 20, a trágica moda cedeu espaço ao medo e à preocupação das autoridades de saúde pública no mundo inteiro. Ao mesmo tempo, a doença passou a ser alvo de preconceito e motivo de confinamento em massa de pacientes. Pesquisa de 2010 da Fundação Global TB mostra que 57% das 3.639 pessoas ouvidas indicaram internação para os doentes de TB; 34% mandaram separar roupas e talheres; 30% disseram que evitam tocar e falar com pacientes; e apenas 27% admitiram que nada mudou no contato com as pessoas afetadas.

Coquetel eficiente Uma das estratégias de ação do governo brasileiro para minimizar os impactos negativos da TB com a redução de taxas de contaminação e elevação dos índices de adesão ao tratamento vem de Farmanguinhos, do Complexo Fiocruz, no Rio de Janeiro. Começa a ser distribuído em agosto deste ano um novo kit de medicação, o quatro em um. Com esse novo esquema, o paciente ingere apenas de dois a quatro comprimidos por dia, em vez dos nove que era (e ainda é) obrigado a tomar.

A novidade no kit, que está sendo negociado como transferência de tecnologia entre Farmanguinhos e o laboratório indiano Lupin, é a introdução do ebutambol, uma droga que evita a resistência dos pacientes à rifampicina e à isoniazida ¿ dois antibióticos usados no combate à TB, que se aliam à pirazinamida para deter a multiplicação dos bacilos de Koch e neutralizar a possibilidade de recaída. ¿A ideia é melhorar o arsenal tecnológico do Brasil e ampliar as formas de combate à doença¿, explica Hayne Felipe, diretor de Farmanguinhos, referindo-se ao contrato de cinco anos assinado no começo da semana. ¿Ao fim desse acordo, passaremos a produzir o medicamento nos nossos laboratórios¿, acrescenta.

Felipe também admite ser ainda elevada a taxa de incidência da doença. ¿Para o padrão médio de países que lutam contra esse mal, o Brasil ainda tem uma taxa de mortalidade preocupante¿, reconhece. Segundo Felipe, a nova formulação do medicamento favorece a adesão ao tratamento e reduz a taxa de abandono no Brasil, que ainda é considerada alta ¿ cerca de 9% ao ano. ¿Queremos baixar para 4% ou 5% nos próximos cinco anos¿, observa.

O combate Ricardo Martins, pneumologista do Hospital Universitário de Brasília (HUB) e do Hospital Anchieta, afirma que o preconceito afasta as pessoas do tratamento, porque elas se sentem discriminadas ¿ muitas vezes, na própria casa. Segundo ele, é preciso fazer um trabalho de conscientização para aumentar os níveis de adesão ao tratamento e acabar com a discriminação. ¿Há avanços no combate à doença, nos últimos 20 anos, mas, se você observar direito, a tuberculose é um desafio maior do que a dengue, por ser uma doença de fácil transmissão e ainda cheia de preconceitos¿, avalia Martins.

No Dia Mundial de Combate à Tuberculose, lembrado no último dia 24 nos seis continentes, sobretudo na Ásia e na África, como uma mancha indesejável de temor e descaso entre as populações pobres, o Brasil comemorou a redução da taxa anual de novos casos, de 73 mil para 70 mil, entre 2008 e 2010 ¿ embora a queda tenha sido de apenas 4%. Ao mesmo tempo, o país passou a data lamentando ter perdido a chance de elevar a 95% a taxa de cura da enfermidade ¿ como preconiza a Organização Mundial de Saúde ¿ e ter estacionado em 75%.

¿A situação da tuberculose no Brasil não é mais grave do que em países africanos, por exemplo, mas reflete em boa parte o que ocorre no mundo, em termos de investimentos irrisórios em drogas novas¿, critica Ricardo Martins. Moçambique, dos países africanos, é o que tem a mais alta taxa de mortalidade: 127 por 100 mil habitantes. A OMS estabelece como aceitável 20 óbitos por 100 mil. No Brasil, esse número é de 2,5 por 100 mil habitantes.

Segundo o médico do HUB, o Brasil, no entanto, tem uma reconhecida tradição no combate à TB, desde Oswaldo Cruz. ¿Houve uma ruptura nesse processo durante o governo Collor (Fernando Collor de Mello presidiu o pais de 1990 a 1992), mas, depois, as campanhas foram retomadas¿, acrescenta Martins, para quem a situação ainda é ¿muito grave¿. Uma das vantagens atuais no sistema brasileiro de combate à doença, apontada pelo médico, é que as autoridades sanitárias reativaram as campanhas e mobilizaram as equipes de programas como o Saúde da Família.

Mortos famosos Marguerite Goutier, a personagem do romance A dama das camélias, de Alexandre Dumas Filho, imortalizada no cinema com Greta Garbo no papel da prostituta melancólica que contrai tuberculose, é um dos melhores exemplos da simbologia trágica e romântica que ornava a doença do século 19. Na robusta galeria de nomes que sucumbiram ao ¿mal do século¿, aparecem Anton Tchecov, Castro Alves, George Orwell, Manuel Bandeira, Vivien Leigh, José de Alencar e D. Pedro I, entre outros. No rol da ficção, a Mimi, de La Bohéme, Hans Castorp, de A montanha mágica e o lendário Doc Holliday, um dos personagens mais marcantes do Oeste Americano e modelo do que não deve ser um paciente de tuberculose.

Principais sintomas A tuberculose pulmonar é a manifestação mais comum da doença. A transmissão é feita pelo ar, por meio da tosse, de espirros ou mesmo quando se fala. Estima-se que uma pessoa infectada, se não tratada, pode contaminar outras 15 em um ano. De acordo com as estatísticas, dessas 15, apenas uma ou duas desenvolverão sintomas. Somente os casos sintomáticos são capazes de transmitir a doença. O quadro típico de tuberculose pulmonar é de febre com suores e calafrios noturnos, dor no peito, tosse com expectoração, por vezes com sangue, perda de apetite, prostração e emagrecimento súbito.

Pai da microbiologia O médico alemão Heinrich Hermann Robert Koch (1843-1910), um dos fundadores da microbiologia, é um dos principais responsáveis pela atual compreensão da epidemiologia das doenças transmissíveis. As principais contribuições de Koch para a ciência médica incluem a descoberta e descrição do agente do carbúnculo e do seu ciclo, a etiologia da infecção traumática, os métodos de fixação e coloração de bactérias para estudo no microscópio e a descoberta, em 1882, do bacilo da tuberculose ¿ o bacilo de Koch. Em 1883, descobriu o vibrião colérico. Foi contemplado com o Prêmio Nobel de Medicina de 1905.