Título: Frota tecnicamente inviável pode impedir a Vasp de voar
Autor: Roberto Manera
Fonte: Gazeta Mercantil, 29/09/2004, Transporte & Logística, p. A-15

Denúncia de tripulantes revela que empresa não fez revisões obrigatórias. O cancelamento de 50 vôos domésticos ontem, por causa da paralisação dos funcionários da Vasp pelo pagamento dos salários atrasados de agosto, instalou uma situação caótica nos principais aeroportos do País. Os vôos que partiam de Brasília para São Paulo, no final da tarde, estavam lotados - em alguns casos por passageiros que conseguiam endossar suas passagens Vasp nas demais companhias que exigiam que as passagens da companhia paulista tivessem sido emitidas até uma certa data e pagas à vista para que seus titulares embarcassem. Enquanto funcionários da Vasp realizavam uma passeata de protesto até o Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista, co-proprietário da companhia, a diretoria da Vasp divulgava uma nota oficial garantindo que os salários atrasados seriam pagos "impreterivelmente" ontem mesmo e que os portadores de bilhetes de sua emissão não teriam dificuldades para viajar em outras empresas. A nota pedia, ainda, que os grevistas voltassem ao trabalho.

Frota inviável

Analistas da aviação comercial duvidam que mesmo pagando todas as suas dívidas, a companhia aérea possa voltar a voar. "A frota da Vasp é tecnicamente inviável" disse ontem um desses analistas. Composta de um Airbus A300 com mais de vinte anos de idade, de dez Boeing 737-200 com pelo menos 35 anos de uso, todos com mais de 90 mil horas de vôo e três Boeing 737-300 - os únicos capazes de operar em aeroportos críticos, como o Santos Dumont, no Rio -, com as prestações de leasing em atraso e arresto pedido pelas companhias lessoras, essa frota dificilmente continuará operando. A Vasp conseguiu, em dezembro do ano passado, adiar o prazo determinado pela própria Boeing para duas revisões de caráter mandatório em todos os B737-200 ainda em operação. Uma delas dizia respeito a corrosão nas longarinas da fuselagem; a outra, a uma rachadura recorrente nesse modelo de aeronave, no piso entre o porão e a cabine, depois de muitas horas de vôo. O Departamento de Aviação Civil (DAC), encarregado de fazer cumprir os regulamentos, determinou a permanência da frota de Boeing 737-200 no solo por "falta de manutenção", provavelmente por causa das revisões não executadas, mas só o fez depois que os tripulantes da empresa denunciaram a situação por causa dos atrasos salariais.

Rota descendente

A crise que atingiu seu ponto crítico esta semana começou em 1992, quando companhias de leasing norte-americanas arrestaram nada menos de 30 das 53 aeronaves que a Vasp tinha em sua frota. Os aviões confiscados estavam com as prestações de leasing atrasadas havia oito meses, e os arrestos obrigaram a empresa a readequar sua malha de vôos à frota encolhida e com características como pequeno alcance e pouca capacidade. Em 1993, a GPA, na época a maior companhia de leasing do mundo, foi à falência e precisou ser absorvida pela Gecas (General Electric Capital Services) para evitar um efeito dominó sobre toda a indústria aeronáutica. Na época, as brasileiras Transbrasil e Vasp foram nominalmente citadas entre as companhias que mais contribuíram para a falência da GPA, o que abalou consideravelmente o crédito da Vasp no meio aeronáutico.

Mesmo assim, a Vasp ainda conseguiu, aproveitando uma situação peculiar da época - na qual os grandes trijatos fabricados pela MacDonnell Douglas (depois absorvida pela Boeing) formavam grandes filas nos desertos secos em que a indústria armazenava seus aviões ociosos - arrendar uma frota de MD-11. Com estes aviões iniciou uma ofensiva nas rotas internacionais, na época dominadas pela Varig.

Foram abertas linhas para a América do Norte (Estados Unidos e Canadá), para a Europa e até para o Japão (Osaka). Mas o alto custo operacional dos MD-11 e o enfraquecimento do tráfego internacional tornaram as novas rotas inviáveis. Logo a empresa já atrasava o leasing dos jatos intercontinentais e até desmontava alguns deles para aproveitar certas peças de reposição nos que continuavam voando. Alguns MD-11 foram retomados pelas companhias de leasing e a Vasp perdeu de vez o seu crédito, tanto no mercado doméstico como no internacional. Restrita à frota de Boeing 737-200, a empresa teve de voltar às rotas domésticas.

Lei do "psiu"

Os B737-200 são aeronaves que em vez dos modernos motores turbofan, mais econômicos e silenciosos, utilizam reatores de jato puro, de grande ruído. Este é outro obstáculo aos planos da Vasp de continuar voando com a frota atual. Em janeiro próximo entram em vigor novas normas para a emissão de ruído pelos motores aeronáuticos - já em prática nos Estados Unidos e na Europa, onde obrigaram as empresas a equipar seus aviões a jato puro com dispositivos silenciadores chamados de hush kits (kits de "psiu") quase tão caros quanto um 737-200 inteiro. Esse custo, somado aos das revisões de corrosão (US$ 1,2 milhão por avião) e prevenção da rachadura do piso da cabine (US$ 1 milhão) equivaleria ao preço de três ou quatro Boeing 737-200 no mercado de aeronaves usadas.