Título: A primavera das negociações
Autor: Gilman Viana Rodrigues
Fonte: Gazeta Mercantil, 30/09/2004, Opinião, p. A-3

Chegamos a 2004, dez anos depois de iniciadas as negociações sobre a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), cinco anos depois de deflagrado o processo da integração União Européia-Mercosul e três anos depois de instalada a Rodada de Doha, sem que do horizonte surgisse nenhum sinal de uma primavera alvissareira para os países em desenvolvimento, como resultado das negociações internacionais entre os países desenvolvidos e os demais. Os últimos estágios atingidos são tão-somente repetição de posições anteriores com linguagem aparentemente atualizada que, sem trazer números nem cronograma, nada definem, pois não há como entender negócio sem a clara participação quantitativa e a definição temporal do negociado.

A aterrissagem do comissário Pascal Lamy (negociador da União Européia) de surpresa em Brasília trouxe de volta a esperança de mudanças na mesa da primavera que assistirá à troca de comando no Velho Continente ao final de outubro. Por termos assistido blefes anteriores, nada nos traz segurança de que a cena não irá se repetir quando estiverem todos à mesa. Há uma percepção indubitável de que postergar é ganhar para aqueles que não querem negociar, que não querem ajustamento aos tempos da internacionalização da economia, não aceitando sequer a revisão dos procedimentos mundialmente reconhecidos como práticas desleais de comércio, cujas normas foram por eles próprios adredemente preparadas.

No âmbito das medidas de apoio interno, que é o subsídio dado à produção, ou seja, dinheiro repassado do tesouro ao produtor, já se constatou que tal apoio instituído por um valor proporcional ao que é produzido levou aqueles que o recebem a uma decisão elementar, de caráter meramente econômico, que é plantar mais para produzir mais e receber mais. Não precisa vida melhor. Ocorre que para plantar mais precisa de mais terra. Onde encontrá-la? Em poder dos vizinhos, especialmente os pequenos. Observou-se, então, uma vigorosa concentração de terra em poder dos que mais ambicionavam aumentar seus subsídios com o aumento da produção e, devido a isso, instalou-se intensa aquisição ou arrendamento de áreas. O desdobramento foi o surgimento de articulado lobby no Congresso, sustentado exatamente pelo conforto da renda fácil, com eles conduzindo projetos de conveniência para o setor.

Como a prática do subsídio à produção leva à oferta de um produto mais caro ao mercado, acaba gerando duas elementares conseqüências: 1) cria a necessidade de proteção tarifária real ou simulada para conter a concorrência com produto de outra procedência com qualidade e preço competitivos; e obriga o consumidor local a pagar mais por um produto disponível em outros supridores a preços muito inferiores. Essa é a face de quem não quer porque não precisa; e, do outro lado da mesa, está o rosto de quem precisa e não assume o pragmatismo necessário para avançar nas negociações em busca de resultados.

Na última reunião da ex-Alca, em novembro de 2003, em Miami, foram colocados frente a frente, para participarem de um debate, os 34 representantes das áreas de comércio exterior dos 34 países participantes da proposta de acordo e 10 representantes do setor privado de diferentes países. No debate, testemunhado por significativa platéia, assistimos a todos os representantes do setor privado manifestarem a seus negociadores que desejavam proposta mais ousada, abrangente e agressiva. Foi um cenário muito rico na montagem e indigente no resultado. Nenhum dos negociadores deu acolhida ao que o setor privado propôs. Fico com a impressão de que o governo anda buscando um meio de não precisar ouvir o setor privado, o que seria melhor do que faz hoje, que é ouvir e não considerar. De outro lado, seria importante que o setor empresarial desenvolvesse ações internas para buscar firme convergência do setor produtivo.

É bom lembrar que a verdadeira razão das negociações internacionais é criar oportunidades para nossas empresas venderem mais. Somente assim geraremos mais empregos e renda. A agricultura está pronta para dar sua contribuição, mas é preciso reduzir protecionismos, o que, obviamente, só será conseguido se concedermos algo em troca. Para tanto, o pilar relacionado a acesso a mercados deve ser tido como prioritário. No recém-acordado "Framework" da agricultura da OMC, este foi considerado o ponto mais fraco do texto. Assim, fica a esperança de que nossos negociadores consigam suprir essa lacuna nos acordos regionais. Está em nossas mãos o acordo com a União Européia. Nas negociações da Alca, a co-presidência exercida pelo Brasil e pelos EUA foi incapaz de destravar as negociações e concluir o acordo de forma satisfatória. Será que desta vez o Brasil, que exerce hoje a presidência pro tempore do Mercosul, terá a liderança suficiente para não perder a oportunidade histórica de firmar acordo com a União Européia?

kicker: A última reunião da Alca foi muito rica na montagem e indigente no resultado