Título: Após o aquecimento eleitoral, risco de calmaria
Autor: Otto Filgueiras
Fonte: Gazeta Mercantil, 01/10/2004, Nacional, p. A-5

Professor da FGV diz que os gastos do governo Lula no período pré-eleitoral estimularam a economia. A retração da atividade econômica em alguns setores já começou. Um bom exemplo é o da indústria do cimento, cujos preços estão caindo no mercado, e um indicador de que a retomada do crescimento da economia nos últimos meses pode ter fôlego curto. Os gastos do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva destinados a obras no período pré-eleitoral e garantir um bom desempenho de seus candidatos, a exemplo da prefeita Marta Suplicy, que concorre à reeleição em São Paulo, ajudaram a aquecer a atividade econômica e isso agora corre o risco de acabar, diz o professor Geraldo Gardenalli, da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV).

Segundo Gardenalli, "após as eleições, o governo Lula vai decidir que tipo de recuperação nós teremos ou não para frente e como vai compatibilizar a questão da inflação e dos juros altos com o crescimento da economia". Ele diz que a política econômica do governo do presidente Lula está sendo mais radical do que aquela praticada nos tempos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Para o professor Gardenalli, "a meta da inflação estabelecida pelo governo e a reação do Banco Central com juros altos provocou retração muito forte da atividade econômica no ano passado, demostrando que não houve preocupação com o recuo da atividade industrial e, consequentemente, com o desemprego que isso provocou".

Ele diz que a equipe econômica governo Lula usou o prestígio pessoal do presidente para fazer um ajuste muito forte e deixou seqüelas na indústria, e a principal delas, além do desemprego, foi a desconfiança dos empresários sobre como o governo vai agir no futuro". Para o professor, "esse é o grande problema, porque a recuperação está sendo influenciada pela alta excepcional do preço internacional do petróleo e isso pode ser motivo para o governo decidir por uma nova alta dos juros e desencandear um processo que vai abortar a recuperação". Consequentemente, diz ele, a nova realidade "jogará as empresas numa situação de capacidade ociosa, de iliquidez e de dificuldades financeiras".

Discreto e reflexivo, Geraldo Gardenalli fala com a autoridade de quem conhece na prática os dilemas da economia brasileira. Além professor da Escola de Economia e da Faculdade de Administração de Empresas da FGV, ele trabalhou no Banco do Brasil (BB) e no Unibanco, na Companhia Brasileira de Distribuição, do Grupo Pão de Açúcar, e foi assessor especial do então ministro Luiz Carlos Bresser Pereira, no Ministério da Fazenda. Foi ainda secretário da Fazenda Nacional, em 1990, no início da gestão do então presidente Fernando Collor de Mello. mas logo deixou o governo por não concordar com os rumos daquela administração. Depois presidiu o banco estatal paulista Nossa Caixa na gestão do então governador Mário Covas, e Ordem dos Economistas de São Paulo. A seguir os principais trechos da entrevista.

Gazeta Mercantil - Por que a economia brasileira há mais de 20 anos faz a trajetória do vôo de galinha, começa a crescer, depois reflui e o país não desencadeia um ciclo de desenvolvimento?

Geraldo Gardenalli - A principal explicação é a falta de condições macroeconômicas para garantir o crescimento sustentado ao longo do tempo. Dentre essas condições não existe taxa de investimento adequada para manter um crescimento sustentado a longo prazo e o país nunca conseguiu montar um balanço de pagamentos que permitisse um crescimento sem aumento da vulnerabilidade externa.

Gazeta Mercantil - O problema ocorre a partir da crise de 1983 ou tem raízes no período do regime militar, quando houve um ciclo de crescimento mais acentuado?

No final do período militar, entre a primeira e a segunda crise do petróleo, houve um aumento do endividamento que fez com que crescesse a vulnerabilidade externa do país. E a partir desse momento ficamos reféns do problema do balanço de pagamentos, que levou inclusive o Brasil a entrar em moratória alguns anos depois. Com o fim do regime militar, nós tivemos governos com uma dívida pública e dívida externa elevada, e sem que se conseguisse uma arrumação da casa. Sempre se colocou que o país precisava melhorar a capacidade de investimento do governo e melhorar o desempenho das contas externas, mas nunca se conseguiu isso de uma forma adequada, como um projeto de longo prazo. Tivemos momentos em que houve melhoras nas condições do Tesouro, que depois voltou a apresentar endividamento elevado. Tivemos momentos em que o balanço de pagamentos melhorou, mas em seguida voltou a ficar crítico por conta das políticas econômicas adotadas. Então, é possível que na base mesmo tenha existido um problema, porque os governos foram obrigados a lançar mão de políticas econômicas para assegurar a governabilidade, mas que de alguma forma provocaram problemas ou de balanço de pagamentos ou de aumento do endividamento interno.

Gazeta Mercantil - O aquecimento do mercado interno será duradouro ou de fôlego curto como aconteceu no passado?

Depois de um período de ajuste, de crescimento de exportações e geração de superávites em conta corrente está ocorrendo um efeito sobre o mercado interno, com aumento de emprego, de renda e que acaba tendo repercussões que contribuem para o desenvolvimento do mercado doméstico. Mas o problema é que governo tem uma dívida pública muito grande e as restrições externas também são elevadas. Portanto, não sabemos até que ponto essa retomada de crescimento pode comprometer o balanço de pagamentos e as condições de governabilidade, por causa da taxa de inflação e do giro da dívida, que hoje são questões cruciais que precisam ser administradas pelo governo.

Gazeta Mercantil - Com o aumento das vendas no mercado interno há algum risco do fluxo das exportações diminuírem?

Sempre é assim. Porque quando se faz um ajuste interno, com a queda da demanda e melhoria da situação cambial, as empresas se voltam para as exportações e tem geração de superávites. Num segundo momento, com a recuperação do mercado interno, as empresas começam a desviar para o mercado doméstico os produtos que eram exportados anteriormente e ocorre uma queda no ritmo das vendas externas e um aumento de importações. O ideal é que o crescimento seja de uma certa forma administrado para que isso não se torne um problema, porque é possível manter viável algum crescimento, mesmo com redução do volume de exportações e aumento de importações. Mas é necessário investimentos público e privado, e mais crédito internacional, o que poderá acontecer.

Gazeta Mercantil - A política de juros elevados do Banco Central atrapalha esse equilíbrio?

A questão dos juros agora tem a ver mais com a inflação e a dívida pública. O que provavelmente vai acontecer é que no curto prazo, e para ganhar credibilidade juntos aos credores nacionais e internacionais, o governo vai seguir uma política de metas de inflação, o que implica em manter a inflação baixa e juros relativamente altos. Com o crescimento pode haver uma tendência de mais inflação e ai a regra da meta vai recomendar que o Banco Central aumente a taxa de juros e pode ser que isso aborte novamente a recuperação da economia brasileira.

Gazeta Mercantil - Existe alguma opção para a estratégia adotada pelo governo?

Talvez uma política de múltiplos objetivos possa compatibilizar algum crescimento com controle da inflação e o financiamento do balanço de pagamentos.

Gazeta Mercantil - E por que o governo Lula e o Banco Central não fazem isso?

Porque autoridade monetária olha apenas para a inflação e usa o instrumento juros para controlá-la. Com o Banco Central mantendo essa regra, é difícil para o empresário tomar a decisão de investir. Afinal, se o industrial investe em ativos fixos, que podem comprometer a flexibilidade da empresa a médio prazo, e há uma aceleração da inflação e o BC novamente decide elevar os juros e reverter o crescimento, a empresa pode ficar com capacidade ociosa, como já aconteceu inúmeras vezes no passado.

Gazeta Mercantil - Então os empresários não vão investir?

Por enquanto os empresários vão fazer investimentos marginais e esperar um pouco para ver qual será o comportamento da taxa de inflação, e que taxa de juros o Banco Central vai adotar, para decidir, então, sobre investimentos de maior vulto.

Gazeta Mercantil - Se a taxa Selic for menor não possibilitará algum investimento em infra-estrutura, por exemplo?

O receio agora é que uma alta na taxa de juros, como já aconteceu na última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central, possa inviabilizar a retomada do crescimento. Afinal, a elevação do preço do petróleo no mercado internacional e o aumento dos preços das matérias primas de uma forma geral influenciam as metas previstas de inflação para os próximos meses. Se isso for relevante e o BC subir as taxas de juros, pode complicar as coisas do lado do investimento em infra-estrutura.

Gazeta Mercantil - O governo do presidente Lula terá condições políticas de subir ainda mais a taxa de juros e frustar mais uma vez o crescimento da economia?

Até as eleições o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva conta com essa retomada da atividade econômica para ter um bom desempenho eleitoral. Após as eleições, isso será uma questão em discussão, quando o governo vai decidir que tipo de recuperação nós teremos ou não para frente e como vai compatibilizar a questão da inflação e dos juros altos com o crescimento da economia nacional.

Gazeta Mercantil - A dinâmica econômica costuma ter vida própria e isso não atrapalha no curto prazo os planos do governo?

A dinâmica econômica provavelmente vai criar um movimento de aceleração da recuperação e isso certamente trará efeitos inflacionários. E juntando essa realidade com a alta do preço internacional do petróleo, e do preço das matérias primas, pode tornar o quadro um pouco mais complicado. É possível que o país não possa crescer com taxas maiores nos primeiros dois ou três anos, enquanto não se faz investimentos em infra-estrutura que possam apoiar um crescimento com taxas mais elevadas. Precisamos ver se o governo Lula vai permitir que ocorra um crescimento durante esse período, construindo as bases para um desenvolvimento mais vigoroso para frente ou se novamente vai acontecer como no passado, quando diante de uma pequena aceleração da inflação o Banco Central subiu os juros e houve um recuo no processo de recuperação da atividade econômica do país.

Gazeta Mercantil - Uma taxa de juros menor do que a atual pode contemplar essas questões e garantir um certo crescimento?

Quando se tem uma recuperação econômica, o ideal é buscar um equilíbrio de múltiplos objetivos, permitindo que o crescimento econômico ocorra, mas mantendo controle da inflação sob certas condições, e um equilíbrio viável do balanço de pagamentos. Essa é a opção ideal e dará ao empresariado um pouco mais de confiança para investir. Mas, na medida que o governo só tem uma política de meta de inflação, que limita-se a ação e reação, o BC reage aumentando os juros para conter a inflação, e os cenários nacional internacional tornam-se um pouco mais complicado, agora os empresários sabem que se inflação aumentar o governo vai agir subindo os juros e isso novamente vai afetar a demanda.

Gazeta Mercantil - Quais as diferenças fundamentais entre a política econômica do governo Lula e a que existia nos tempos da gestão do ex-presidente Fernando Henrique?

A política econômica do governo do presidente Lula está sendo mais radical do ponto de vista da meta da inflação e da reação do Banco Central com sua política de juros altos, o que provocou uma retração muito forte da atividade econômica no ano passado. Isso significa que o governo não se preocupou muito com o recuo da atividade na indústria e, consequentemente, com o desemprego que isso provocou. Como o presidente Lula tem um prestígio muito alto, a equipe econômica do seu governo usou isso para fazer um ajuste muito forte e deixou seqüelas na indústria. E a principal delas, além do desemprego, foi uma certa desconfiança dos empresários sobre como o governo vai agir no futuro. Esse é o grande problema, porque a recuperação está sendo influenciada por uma alta excepcional do preço internacional do petróleo e isso pode ser motivo suficiente para o governo decidir por uma nova alta dos juros e desencandear um processo que vai abortar a recuperação. Consequentemente, jogará as empresas numa situação de capacidade ociosa, de iliquidez e de dificuldades financeiras. A meu ver, é o principal ponto que influência negativamente os empresários na decisão de fazer ou não investimentos mais pesados nesse momento.

Gazeta Mercantil - Os gastos do governo Lula no período pré-eleitoral ajudaram a detonar essa retomada do crescimento?

Com o aumento das exportações já havia uma tendência para isso, os indicadores demonstravam recuperação nos setores voltados para exportação, e também nos setores de bens de capital, mas o mercado interno estava ainda um pouco adormecido. Percebi que nos últimos meses houve um aumento de gastos do governo nesse período pré-eleitoral. E isso pode ter sido o detonador de um fator novo no mercado interno, que acabou gerando, ai sim, uma adesão ao movimento que já vinha com as exportações e que está provocando todo esse otimismo com o crescimento e que certamente vai continuar acelerando nos próximos meses. Afinal, na medida que mais pessoas se sentem cada vez mais seguras, vão gastar mais e isso gera mais empregos.