Título: Conta investimento contribui para inflar liquidez
Autor: Adriana Cotias
Fonte: Gazeta Mercantil, 01/10/2004, Finanças & Mercados, p. B-1

Parcela da dívida, fora do Banco Central, atrelada à taxa over-Selic era de 58,5% em agosto, ou R$ 445,6 bilhões. A conta investimento só entra em vigor hoje, mas alguns efeitos colaterais da liberdade de migração de recursos entre aplicações financeiras - sem o ônus da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) -, já são sentidos no mercado. Não que se espere, de imediato, uma grande movimentação entre fundos pelos cotistas, mas, preventivamente, os gestores de recursos têm privilegiado ativos de maior liquidez, deixando uma parte do patrimônio em operações compromissadas de curtíssimo prazo do Tesouro ou recorrendo, por meio das tesourarias dos bancos que administram seus fundos, aos leilões de dinheiro do Banco Central (BC), os chamados "go around". A brincadeira tem contribuído para ampliar a já inflada liquidez do sistema financeiro.

Só na quarta-feira, o BC retirou R$ 30,9 bilhões de circulação: R$ 10,8 bilhões em operações de venda de títulos com compromisso de recompra para 27 de outubro, e, uma outra parcela, de R$ 15,5 bilhões, em recursos esterilizados no "overnight", as transações de um único dia feitas entre bancos e a autoridade monetária. Esses movimentos têm sido recorrentes e retardam os planos de alongamento da dívida pública mobiliária pelo Tesouro. Em agosto, nada menos do que 58,5% da dívida fora do Banco Central (BC), o equivalente a R$ 445,6 bilhões, estava indexada à taxa over-Selic.

"O aumento da liquidez já era esperado, pois o sistema vinha se preparando para a entrada da conta investimento e as compromissadas, neste momento de transição, funcionam como uma forma dos gestores rearrumarem as suas carteiras", dizia o secretário do Tesouro Nacional, Joaquim Ferreira Levy, após o almoço de posse da diretoria da Associação Brasileira de Bancos (ABBC), no início da semana.

Os administradores de recursos temem que a conta investimento induza a um maior movimento de saques e, na dúvida, ficam no curto prazo mesmo. Escaldados com o episódio da marcação a mercado em 2002 e depois com a desvalorização de títulos pós-fixados longos em períodos de maior turbulência, a ênfase natural tem sido por ativos de fácil giro. O resgate líquido de papéis públicos - como os cambiais - e a baixa demanda por prefixados num cenário de alta da Selic também estimulam o comportamento defensivo, embora não haja nenhum sinal de crise no horizonte.

"Apesar da melhora fiscal e macroeconômica, os papéis longos não têm tanta aceitação porque qualquer intempérie pode fazer com que a liquidez no secundário diminua e se corre o risco de vender um título a preços depreciados", diz o sócio da GAP Asset Management, Emanuel Pereira da Silva. "Mesmo com o estímulo da tributação decrescente que virá por aí, não posso mudar de mala e cuia para o longo prazo e prejudicar meus clientes." A gestora independente administra cerca de R$ 1,5 bilhão e deixa no curtíssimo prazo, leia-se até dois dias, cerca de 50% do patrimônio. O resto da carteira não ultrapassa os 30 dias.

Estratégia semelhante adota a Mellon Global Investment, que deixa 30% dos recursos aplicados em seus fundos abertos, na casa de R$ 1,5 bilhão, no "overnight". "Nossos fundos têm liquidez diária, não dá para ficar comprometido no longo prazo", diz o diretor de Investimentos, Eduardo Rezende.

A ata da reunião de setembro do Comitê de Política Monetária (Copom) dá uma idéia da abrangência das intervenções da autoridade monetária no mercado aberto: "o Banco Central manteve (em agosto) suas operações compromissadas semanais pós-fixadas, com prazo de duas semanas, e prefixadas, com prazo de três meses, bem como suas operações diárias de nivelamento da liquidez bancária, com prazo de dois dias úteis. Além disso, atuou em outras quinze ocasiões, tomando recursos por meio de operações compromissadas, em quatorze delas com prazo de um dia útil e em uma com prazo de três dias úteis. No período, o excesso de liquidez bancária esterilizado pelas operações com prazo inferior a 30 dias caiu para a média de R$ 31,6 bilhões, e, pelas operações com prazo de três meses, subiu para a média de R$ 48,8 bilhões." Na somatória, são R$ 80,4 bilhões rolados no "overnight".

"Esta montanha de dinheiro no curto prazo sugere um risco grande, como se houvesse um descontrole inflacionário ou cambial", diz o economista-chefe do Pátria Banco de Negócios, Luis Fernando Lopes. "Há uma resistência grande dos financiadores do governo em sair dessa indexação." O especialista argumenta que haveria uma chance de ouro para alongar o perfil da dívida mobiliária, já que o governo tem conseguido gerar superávit primário e o déficit público nominal (que inclui o pagamento de juros), em 12 meses, atingiu, em agosto, 2,78% do Produto Interno Bruto (PIB), o menor patamar da história.

Para os credores do governo, a situação é bastante confortável, já que não há taxas punitivas para a rolagem no curtíssimo prazo. Os leilões de "go around" do BC têm sido feitos a 99,9% da taxa over-Selic - em 16,23% ontem -, o que resulta numa remuneração acima do que as tesourarias conseguiriam se optassem pelas trocas no interbancário, via Certificado de Depósito Interfinanceiro (CDI), a 16,14% ao ano. "Credibilidade é algo que se conquista, não se compra, é um exercício diário de disciplina", resume o sócio da GAP, Emanuel Silva. "O marco regulatório ainda precisa avançar."