Título: Em risco o novo surto de crescimento
Autor:
Fonte: Gazeta Mercantil, 04/10/2004, Opinião, p. A-3

Em seu "Relatório de inflação do terceiro trimestre de 2004", o Banco Central (BC), ao discorrer sobre os "determinantes da inflação" começa por manifestar aparente otimismo ante a "forte recuperação da economia, conforme atestam indicadores de produção, vendas e emprego", para em seguida advertir, modulando o seu bordão, que o que mais o preocupa - no tocante ao desafio de manter a inflação sob controle - já não é a velocidade de expansão da demanda, mas a iminente saturação da capacidade instalada na indústria. Ou seja, já nos seus primeiros passos para fora do estado de letargia em que se encontrava, prostrada sob o peso de ingente ociosidade na capacidade instalada e de inflexões abissais na taxa de desemprego - tendo gerado um PIB negativo no ano passado -, a economia brasileira estaria agora próxima do "nível máximo de produto sustentável", ainda que apresentando uma taxa de crescimento considerada muito modesta, ou a menor entre os países emergentes.

Segundo o mesmo relatório, além do nível de utilização da capacidade instalada, um outro "indicador de pressões inflacionárias" que desempenharia um papel central na avaliação da política monetária, é o hiato de produto - ou, a diferença entre produto efetivo e produto potencial. O hiato do produto estaria mostrando, igualmente, que o crescimento da economia está próximo do limite por avançar para além do que a oferta poderia suportar.

Como é óbvio, o argumento pretende conduzir o leitor à conclusão de que ele precisa conformar-se com a desaceleração induzida do crescimento, para que o BC possa conter a inflação. Esses são os dois principais argumentos em que se apóia o BC para justificar um novo aumento na taxa básica de juros, assentado na crença de que assim conseguirá remover "os riscos latentes à trajetória da inflação".

O primeiro argumento utilizado para abortar o novo surto de crescimento não é novo - e seu poder de convencimento, se é que dispõe de algum, resulta mais de sua repetição do que de sua aderência à realidade. Pois a experiência empresarial brandiria o mesmo indicador utilizado pelo BC - o nível de utilização da capacidade instalada - para concluir na direção oposta: na fase inicial de toda recuperação cíclica, como a experimentada pela economia brasileira neste momento, um menor nível de ociosidade, ao elevar a produtividade, reduz fortemente os custos fixos unitários, tornando possível a recuperação das margens de lucros e a retomada do investimento. São pressões deflacionárias - e não inflacionárias - as que atuam nessa fase do ciclo. Isso, quanto ao nível de utilização da capacidade instalada, ou ao produto potencial.

Quanto ao hiato de produto, a experiência empresarial entende, diferentemente dos videntes do mercado financeiro, que limites à expansão da atividade econômica ou pressões inflacionárias, se ocorressem no contexto atual, poderiam vir não da capacidade física de produção, mas do mercado de trabalho. Pois a capacidade produtiva potencial não diz respeito a alguma grandeza física, mas ao espaço em que se dá o equilíbrio entre a oferta e a demanda de trabalho, em condição tal que o seu custo unitário é estável. Ora, no caso brasileiro, está-se falando de taxa de desemprego aberto de mais de 11%, ou de um limite do mercado de trabalho muito longe de ser atingido. Pode admitir-se, sim, que o aparente limite à expansão da atividade econômica esteja na capacidade física instalada de alguns setores, como o de bens intermediários. Mas não se ignora que a economia brasileira é aberta, nada impedindo que se possa importar livremente, tanto mais que o câmbio é favorável e o saldo na balança comercial e em conta corrente é positivo.

Ademais, como se tem insistido em resposta aos relatórios do BC, o recurso à elevação da taxa de juros como instrumento de contenção dos preços é inócuo. Não se enxergam sinais convincentes de pressão de demanda - e a alta dos índices de preços no ano deve-se a choques de oferta - como a explosão das commodities, que são cotadas em dólar -, a aumento das tarifas públicas e a fatores sazonais. Nesse contexto, a contenção da demanda, mediante a elevação da taxa de juros, incidirá seletivamente sobre os preços livres, reprimindo os repasses de custos, comprimindo a margem de lucro e debilitando a capacidade de investimento. O resultado é que o novo ciclo será ainda mais débil do que o atual.

Muito se tem comentado sobre a hesitação das inversões ante a retomada. Pergunta-se se não é o receio de vê-la frustrada novamente que explicaria a cautela.

kicker: A despeito da retomada, hesita-se em investir. Pergunta-se se não é o receio de vê-la abortada novamente que explicaria a cautela