Título: Os males do real valorizado
Autor: Antonio Corrêa de Lacerda
Fonte: Gazeta Mercantil, 06/10/2004, Opinião, p. A-3

O atual processo de valorização do real é um grande equívoco de política econômica. Muita gente pensa que as taxas de câmbio só afetam os exportadores. Na verdade, o câmbio é um dos principais preços da economia, na medida em que reflete a paridade da moeda local relativamente às demais. Isso quer dizer que não só as decisões de exportações são afetadas pelas taxas de câmbio, mas também decisões de investimentos produtivos, localização industrial, substituição de importações, projetos envolvendo agregação de valor local, pesquisa e desenvolvimento, etc.

Embora um câmbio baixo possa ser favorável, a curto prazo, ao controle da inflação, a médio e longo prazos seu efeito é deletério no que se refere a todos esses fatores.

Um outro equívoco é comparar o bom nível atual do fluxo de exportações com a taxa de câmbio baixo, concluindo-se daí que o câmbio baixo não as tem prejudicado, uma vez que continuam aumentando fortemente e gerando crescentes superávits comerciais.

O fato é que as decisões no ambiente produtivo ocorrem em um timing totalmente distinto do que nos mercados financeiros. O fluxo de exportações de hoje é resultado de decisões tomadas há vários meses (em alguns casos, anos) envolvendo contratos com clientes, assim como decisões de localização de plantas exportadoras.

Embora a taxa de câmbio competitiva não represente uma condição suficiente para o ajuste externo, ela é uma condição necessária para que o Brasil continue fazendo parte do jogo. Há uma disputa feroz não só por mercado, no campo das exportações, mas pela localização de investimentos mundo afora.

A globalização das últimas duas décadas alterou significativamente a divisão internacional do trabalho, que passou a ser predominantemente definida por estratégias das grandes corporações transnacionais, responsáveis por cerca de 65% do comércio mundial. Ou seja, há vinculação crescente entre investimento direto estrangeiro e comércio internacional e, destes, com as inovações.

A economia brasileira vivenciou uma experiência danosa com a valorização artificial da taxa de câmbio no período 1994-1998, em que houve uma expressiva deterioração da balança de transações correntes. A conseqüência foi o aumento da vulnerabilidade externa com a ampliação do passivo externo em mais de US$ 200 bilhões, a prática de uma elevada taxa de juros e a dolarização de títulos do governo que inflaram a dívida pública. Ainda hoje pagamos o custo daquele equívoco. As experiências do México e da Argentina foram igualmente danosas nesse sentido.

Desde a adoção da taxa flutuante em 1999, o quadro brasileiro mudou. O caminho não foi fácil: era preciso que os agentes produtivos acreditassem na nova política e tomassem decisões no sentido de aumentar exportações e substituir importações.

Embora a introdução da taxa de câmbio flutuante represente um evidente avanço em relação ao regime de taxas administradas vigente no modelo anterior, isso não quer dizer que o Banco Central não deva ter uma participação ativa no processo. Na maioria dos países bem-sucedidos em suas políticas cambiais prevalece um regime de "flutuação suja", ou seja, o câmbio é determinado pela oferta e demanda no mercado, mas dentro de uma determinada banda, nem sempre explícita, em que o Banco Central direta ou indiretamente intervém no mercado para evitar desvalorizações ou valorizações excessivas.

Trata-se de uma atitude providencial, dada a volatilidade e magnitude dos fluxos cambiais internacionais que superam em muito o montante das reservas cambiais dos bancos centrais. Ou seja, para países que não possuem moeda conversível, como é o caso do Brasil, o risco é ainda maior. Principalmente se, coincidentemente e por causa disso, praticarem taxas de juros domésticas bastante superiores à média internacional.

Particularmente no caso brasileiro dos últimos dois anos houve uma melhora substancial na balança comercial que propiciou uma inversão no saldo em conta corrente, que chegou a ser negativo em 5% do PIB, de 1998 a 2000, e hoje é positivo em 1% do PIB. Esse é um dos principais fatores que propiciaram maior autonomia das políticas domésticas e a retomada, ainda incipiente, do crescimento econômico.

Mas, apesar dos progressos, ainda há muito a ser feito. É preciso aumentar a corrente de comércio (exportações e importações) e preservar superávit comercial expressivo para contrabalançar o déficit na conta de serviços. Além disso, é preciso construir um nível de reservas próprias de, pelo menos, o dobro do volume atual de US$ 25 bilhões, muito baixo para fazer frente ao perfil do passivo externo brasileiro e à extrema volatilidade dos fluxos de capitais internacionais.

Não vale a pena correr o risco de jogar fora uma bem-sucedida história recente de sucesso brasileiro, incorrendo novamente na armadilha da valorização excessiva da taxa de câmbio.

kicker: A globalização das últimas duas décadas alterou a divisão internacionaldo trabalho