Título: O Brasil e as eleições nos EUA
Autor: José Luiz Niemeyer dos Santos
Fonte: Gazeta Mercantil, 15/10/2004, Opinião, p. A-3

O debate atual acerca das relações internacionais do Brasil se encontra intimamente relacionado ao resultado das eleições presidenciais nos Estados Unidos. Fato.

Existe, hoje, uma idéia, quase imbatível, tanto no meio acadêmico como junto à opinião pública brasileira, de que a vitória de John Kerry no pleito de novembro traria mais benefícios para a estratégia de promoção e de inserção dos interesses brasileiros no contexto internacional em comparação à reeleição de George W. Bush. Fato questionável quando se observa com mais nitidez e menos paixão possíveis desdobramentos das relações internacionais a partir do evento eleitoral norte-americano.

A atual política externa de Washington é, sim, unilateralista; utiliza-se mais de instrumentos de coerção do que de cooperação; fundamenta-se sobre idéias maniqueístas para projetar poder e parte, sempre, dos interesses nacionais norte-americanos para definir a tomada de decisão na esfera dos assuntos externos.

Aos quatro ventos propala-se que a agenda de política externa de Kerry será muito mais fundamentada sob a égide do multilateralismo e da cooperação e que, assim sendo, os instrumentos de força serão alocados de acordo com necessidades pontuais.

Se pautarmos a defesa dos interesses externos do Brasil tendo nessas duas abordagens o nosso referencial para ação, não é claro se a segunda opção de forma de consecução de política externa norte-americana nos seria mais favorável.

Não nos esqueçamos de que o contexto internacional ainda se desdobra - e assim será durante muitas décadas - sob uma dinâmica interestatal na qual lógicas reducionistas não devem ser ignoradas. Desta feita, em uma primeira análise, é mister considerar que os interesses internacionais do Brasil nem sempre estarão - apesar da costumeira retórica diplomática - definitivamente amalgamados naqueles mesmos interesses da comunidade internacional. Cumpre questionar se a vitória de Kerry não trará muito mais obstáculos do que possibilidades para o desenvolvimento dos objetivos de política externa do Brasil.

Os republicanos estão e continuarão muito mais preocupados com temas de segurança internacional, que relacionam, entre outros, a chamada "guerra ao terror", a reorganização geoestratégica do Oriente Médio, a indefinição acerca do conflito entre Índia e Paquistão, o (re)posicionamento russo na Europa, a postura assertiva da Coréia do Norte, o recrudescimento dos muitos nacionalismos, a manutenção das linhas de fornecimento de petróleo para os EUA, entre outros assuntos. Prevalece, na atual administração norte-americana, um olhar intenso para as questões da denominada "alta política".

Os democratas ampliarão o foco da agenda de política externa dos Estados Unidos. Continuarão - como é padrão na história da política externa daquele país - com determinadas "políticas de poder" que envolvem a tão simbólica "segurança nacional"; todavia, serão organizadas algumas inserções alternativas por parte do novo governo em áreas específicas, estas muito sensíveis aos interesses brasileiros.

Seguem formulações sob esse enfoque:

1) A vitória de John Kerry implicará uma discussão muito mais sofisticada e acalorada - o que não ocorre no governo Bush - com relação aos temas que envolvem o meio ambiente; alteração vetorial da política externa dos EUA, que irá se interseccionar com os objetivos brasileiros, de curto prazo, que são fundamentais para a nossa estratégia de desenvolvimento.

2) A chapa democrata é sensivelmente mais protecionista no que tange a comércio, inclusive porque os republicanos se impuseram outras preocupações estratégicas, do que a atual administração. O desdobramento dos projetos de integração econômica, nos quais o Brasil busca ser agente relevante, serão, de alguma forma, percebidos sob uma ótica muito mais crítica por parte dos norte-americanos.

3) A América do Sul, tanto seu potencial quanto também suas mazelas - problemas estruturais graves -, será assunto corriqueiro na Casa Branca. A administração destas questões - principalmente por parte do pretenso país líder da região, o Brasil - será muito mais complexa e envolverá uma margem limitada de autonomia e de decisão política.

Tais cenários implicam considerar que os interesses dos países muitas vezes não se complementam; há espaços claros para a consecução de estratégias de inserção internacional de caráter particular.

Devemos então refletir, sem emoção - resgatando sempre um racionalismo histórico emblemático e positivo da nossa diplomacia -, se com uma vitória do Partido Democrata em novembro próximo o Brasil, em particular, não estará mais exposto, próximo do "olho do furacão", arena na qual se estabelecem formalmente as contradições, os óbices e a rígida hierarquia de poder que hoje formata o sistema internacional.

kicker: Não é claro que a política externa de Kerry nos seria mais favorável do que a de Bush