Título: Distantes das famílias
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 03/04/2011, Brasil, p. 8

Adão tem contato somente com a irmã mais nova Um silêncio incômodo marca as instituições de longa permanência para idosos, mais conhecidas por asilos. Dentro de uma delas, localizada no Distrito Federal, onde a reportagem passou uma semana, a voz de Heleno Mendes da Silva pouco altera o som ambiente, de tão baixinha que é. Mas ele se considera um felizardo. Afinal, faz parte de uma minoria entre os cerca de 60 moradores do lar que anda, fala e tem lucidez. Magro e sempre com a bengala ao lado, Heleno traçou um dos caminhos mais dolorosos, porém comum, para chegar à instituição, em 2009. Foi levado depois de uma denúncia de maus-tratos e negligência, feita pela comunidade onde morava. Embora nunca tenha imaginado sair de sua casa para viver em um asilo, sente-se melhor ali do que na companhia dos filhos. ¿Pelo menos aqui zelam por mim¿, diz o senhor de 88 anos.

Dos quatro filhos, só dois fazem alguma visita ao pai. Certa vez, quando levaram Heleno para passar uns dias em casa, o senhor ligou para a instituição, pedindo para voltar, incomodado com as brigas entre os parentes. A memória de Heleno começa a falhar. Às vezes, precisa parar, pensar, até dizer que não se lembra da resposta para determinado questionamento. De uma coisa, porém, ele sempre se recorda: a ausência da única filha. ¿Nem pergunto mais por ela quando alguém aparece aqui. Queria que eles me procurassem e não eu procurar por eles¿, diz, com um tom de ressentimento. Os ¿esquecimentos¿ esporádicos têm incomodado o paraibano nascido em Juazeirinho há 88 anos. ¿Trabalhei desde criança na roça, mas agora estou sentindo que as forças estão indo embora¿, lamenta o idoso, que é viúvo.

Apesar dos lapsos de memória, Heleno faz as atividades da vida diária sozinho ¿ higiene pessoal, come, caminha. Privilégio de uma minoria dentro das 3.548 instituições de idosos no Brasil, onde 66% são dependentes ou semidependentes, segundo estudo recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). ¿Em vez de servirem para convivência, esses locais estão se tornando centros de doentes crônicos. E isso devido à falta de um atendimento decente de saúde¿, critica o geriatra Renato Maia. O quadro, segundo ele, tende a piorar, já que com a expectativa de vida para além dos 73 anos, aumenta também o risco de doenças incapacitantes, como o Alzheimer. Pacientes dessas patologias já são presença constante nos asilos, onde a morte também é frequente. Em uma semana dentro da instituição visitada, o Correio presenciou a ida de dois idosos ao hospital ¿ apenas um voltou.

No caso de Adão Felizardo de Souza, filho que vingou depois de seis irmãos mortos e, por isso, recebeu da mãe o nome da primeira criação humana de Deus, foi um problema mental que o levou ao lar para idosos. Depois que a mãe morreu, Adão ainda ficou seis anos sob os cuidados da irmã mais nova. Mas Maria Eunice, hoje com 56 anos e problemas de saúde, não conseguiu se dedicar exclusivamente a ele, como é necessário. Nem por isso deixou de ser presente na vida de Adão. Vai ao lar uma vez por semana e, às vezes, leva-o para passar uns dias na casa dela. O último encontro prolongado foi em janeiro. Entusiasmado como uma criança, Adão conta o que fez. ¿Tirei leite da vaca, pesquei, comi carne de coelho¿, enumera. Nascido em Monte Alegre, Goiás, o inquieto fã de Martinho da Vila nunca se casou ou teve filhos. Para ele, a família se resume, além da irmã, aos companheiros da instituição. ¿Gosto do pessoal daqui¿, diz o senhor de 65 anos.