Título: Bolsonaro e o dever da Câmara
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Fonte: Correio Braziliense, 03/04/2011, Opinião, p. 20

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Nas nações democráticas, como o Brasil, aos representantes do povo nas casas legislativas defere-se a proteção da inviolabilidade parlamentar e a da imunidade processual (Constituição art. 53). Não se trata de privilégio, mas de assegurar ao mandatário a mais ampla liberdade para legislar segundo o interesse nacional e em favor das aspirações populares. Não é qualquer exasperação verbal em debates ou adjetivos contundentes que justificam a adoção de medidas punitivas.

Mas há limites para o exercício da prerrogativa. É inadmissível a conduta afrontosa à compostura. Ordena o artigo 55, II, da Constituição: ¿Perderá o mandato o deputado ou senador (¿) cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar¿. Tem-se aí conceito amplo. Barreto Pinto (PTB-RJ) foi o primeiro deputado cassado pela Câmara (maio de 1949) por violação ao decoro parlamentar. Não havia cometido nenhum deslize, mas se exibiu de cueca em foto publicada numa revista.

Eleito seis vezes pelo PP no Rio de Janeiro, o deputado Jair Bolsonaro faltou ao decoro pelo menos 20 vezes, ao proferir declarações insultuosas e desbordantes da ordem democrática. Restou enquadrado seis vezes na hipótese de perda do mandato, mas conseguiu livrar-se dos processos em razão da indulgência de seus pares. Filiado aos mais retrógrados conceitos fascistas e disposto a atacar mediante injúrias graves, muitas vezes foi ao extremo da violência. ¿Cumprimento o presidente Lula por ter nomeado para a Casa Civil (Dilma Rousseff) uma pessoa técnica, especialista em assalto e furto¿, vociferou ele.

Sobre a repressão no regime militar, disparou: ¿Deveriam ter fuzilado uns 30 mil corruptos, a começar pelo presidente Fernando Henrique. O único erro foi torturar e não matar¿. Envenenado pela homofobia, esbravejou em entrevista televisiva: ¿O filho começa a ficar meio gayzinho, leva um couro e muda de comportamento¿. Não é tudo. Na porta do gabinete na Câmara, em alusão à busca dos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia, afixou cartaz com os dizeres: ¿Quem procura osso é cachorro¿.

O conhecido verbete funcional e moral de Bolsonaro há muito tempo enseja a reprimenda da Câmara. Nele há incitação de resistência ao regime democrático e repertório de calúnias ¿ como a qualificação de assaltante e ladra conferida a então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. São destemperos ofensivos à Constituição e à legislação penal. Mas, para sujeitá-lo à reação punitiva da Casa, bastaria o léxico chulo, indecoroso, flagrado em suas declarações.

Agora, a manifestação explícita de racismo em entrevista a uma emissora de TV, agravada com a destilação de rancores homofóbicos, expõe Bolsonaro a situação crítica. O artigo 5º, XLII, da Constituição declara que ¿a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão (¿)¿. O Ministério Público já cuidou de requerer a abertura de ação penal no STF contra o infrator. E, salvo em acinte ao caráter multirracial e multicultural da sociedade brasileira, a Câmara não pode deixar impune semelhante agressão ao decoro, à ordem legal e à Carta Magna.