Título: A virada do setor ferroviário
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Fonte: Gazeta Mercantil, 20/10/2004, Opinião, p. A-3
O contrato da Bunge Alimentos com a América Latina Logística (ALL) para utilizar 4 mil vagões até 2010 para o transporte de granéis agrícolas para os portos de Paranaguá (PR), São Francisco (SC) e Rio Grande (RS) é um indicador importante, não só da retomada sustentável do setor de transporte de cargas por ferrovias no País, mas também da indústria de material ferroviário.
Há outros dados que confirmam esse quadro. No primeiro semestre deste ano foram produzidos 2.338 vagões de carga, dos quais 1.880 encomendados pela Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). A MRS Logística foi responsável pelo pedido de mais 316 vagões, e a Ferronorte, também conhecida como a ferrovia da soja, por mais 100, por encomenda da exportadora de grãos ADM.
Esses números se tornam mais expressivos se comparados com os dados dos anos anteriores, revelados pela Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer). Durante 2003, foram fabricados 2.028 vagões de carga. Isso significa que até meados deste ano a produção já foi 15,3% superior à de todo o ano passado. E de 2002 ¿ quando foram produzidos apenas 294 vagões ¿ para 2003 o crescimento foi de 590%, o que revela, acima de tudo, a estagnação em que estava mergulhado o setor.
Essa situação foi lembrada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em março deste ano, durante discurso em reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, ao defender a necessidade de revitalização do setor ferroviário. Lula disse que quando saiu da Villares Equipamentos, em 1971, a empresa estava começando a produzir locomotivas em Araraquara. Hoje, o quadro ainda é desolador, sob alguns aspectos, conforme palavras do próprio presidente, naquela ocasião: "Essa fábrica não existe mais. O Brasil não só não produz mais locomotivas, como os vagões que temos capacidade de produzir não atendem à demanda. Mas o que é mais grave é que vamos ter de importar trilhos, porque o Brasil não produz mais trilhos. E estamos precisando importar mil vagões e também 100 locomotivas."
Além da pouca saúde e de muita saúva, que eram os males do Brasil nos idos do início do século passado, segundo o famoso bordão popular, outro mal estava se gestando nas primeiras décadas do século XX: a supremacia da rodovia sobre a ferrovia como meio de transporte de carga.
Cerca de 30 anos antes do início da indústria automobilística nacional, Washington Luiz Pereira de Souza foi eleito governador do Estado de São Paulo, em 1920, com o lema "Governar é abrir estradas". E numa época em que nem existiam marqueteiros para orientar e dirigir campanhas políticas. Eleito depois presidente da República (1926-1930), construiu as primeiras grandes rodovias brasileiras para ligar a então Capital Federal, no Rio de Janeiro, ao resto do País. A fabricação dos primeiros veículos nacionais, na década de 50, e o petróleo barato estimularam a opção rodoviária, em detrimento da ferroviária.
Além de as estradas de ferro não terem se expandido significativamente durante décadas, elas foram paulatinamente sucateadas, até serem vendidas na chamada bacia das almas em leilões de privatização em 1996 por R$ 1,4 bilhão, bem abaixo do que o governo pretendia arrecadar: R$ 4 bilhões.
Com a privatização, em que o governo ficou com muitos micos, o quadro começou a ser revertido. Até o início de 2004, a carga transportada por ferrovia aumentou 34,4%, passando de 138 bilhões de toneladas por quilômetro útil (TKU) para 185,5 bilhões de TKU. E a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) projeta para 2008 o transporte de 270 bilhões de TKU, o que representa crescimento de 45% (sobre o total do início deste ano) na produção das onze concessionárias de ferrovias que administram as 12 malhas existentes.
O governo federal lançou o Plano de Revitalização das Ferrovias, que se propõe a aumentar a oferta desse tipo de transporte de carga, a integrar as ferrovias aos demais modais de transporte e a ampliar a capacidade de investimento das concessionárias. São duas as prioridades. A primeira é a expansão da malha ferroviária em andamento: Norte-Sul, Ferronorte e Transnordestina. E a segunda, é a formação de corredores de escoamento de produtos até os principais portos do País, para reduzir os custos de exportação. No ano passado, as onze concessionárias investiram R$ 1,092 bilhão, um aumento de 48% em relação a 2002, quando foram aplicados R$ 737 milhões. O grupo chinês Citic já anunciou que pretende investir US$ 4 bilhões em projetos de infra-estrutura ferroviária e portuária no Brasil em troca de venda de soja.
Caso todos esses planos e projetos dêem certo, o Brasil finalmente poderá recuperar, em parte, um atraso de quase um século no setor ferroviário. kicker: A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) projeta para 2008 o transporte de 270 bilhões de TKU, um crescimento de 45%