Título: Os donos do poder
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Fonte: Correio Braziliense, 04/04/2011, Opinião, p. 10

Visão do Correio

A aprovação de Lei da Ficha da Limpa e a condenação de dois parlamentares pela Justiça comum a penas de detenção em presídios (uma delas revertida para serviços prestados à comunidade) são fatos alvissareiros em relação à mudança de atitude do Poder Judiciário e da mentalidade do eleitorado brasileiro. São sintomas de um desejo latente de avanços sociais, posturas políticas probas e decisões que visem alterar, para melhor, a estrutura legislativa do país e a sua infraestrutura social, enquanto móvel de antigos anseios de prosperidade e de evolução da cidadania.

Por seu lado, se o Congresso Nacional, ao aprovar a Lei da Ficha Limpa, dá sinais em 2010 de que não é uma mera fonte de imunidade ¿ ou de impunidade ¿ parlamentar para salvaguardar direitos de políticos obscuros, permanece evidente que há uma força retrógrada, antagônica a esses avanços. Elas atuam, na linha da prepotência e da ironia, não apenas nos bastidores, mas à luz do cinismo, para perpetuar a falta de ética e a prática de favorecimentos escusos.

Lamentavelmente, essas forças alimentam a tradição da imoralidade e se alimentam de uma mentalidade que contraria normas constitucionais, a exemplo dos princípios de legalidade, impessoalidade e eficiência, perante o exercício de um cargo público ¿ em qualquer esfera dos Três Poderes ¿, como reza o artigo 37, inciso I, da Constituição de 1988.

O mais recente exemplo de que a Lei da Ficha Limpa pode ter sido uma vitória de Pirro e de que os congressistas quase puseram por terra qualquer esforço de moralização da instituição é a seleção acintosa (no sentido de ação premeditada para contrariar a maioria da sociedade que clama por mudanças) de senadores e deputados fichas-sujas para ocupar cargos de notória importância nas decisões que significam manuseio com verbas públicas. Reportagem do Correio mostrou na última terça-feira que, dos 36 cargos estratégicos existentes no Senado Federal, pelo menos 16 se acham nas mãos de parlamentares processados e com contas pendentes com a Justiça. Na Câmara, 12 de 52 cargos de fundamental importância para o país estão entregues a maus políticos.

Diante desse descalabro, é de se concluir que a representação política brasileira só alcançará níveis aceitáveis de postura ética, de cidadania, de humanidade e de modernidade se houver uma mudança cultural de mentalidade cívica no eleitorado e no rol dos que respondem em nome da lei e do parlamento. Somente ocorrerão essas e outras mudanças preconizadas por movimentos sociais ¿ como os que levaram até o fim a aprovação da Lei da Ficha Limpa ¿, quando houver, também, uma reforma política séria, progressista e justa. Do contrário, corre-se o risco de se ver perpetuar no poder o velho e inaceitável modelo do coronelato político ¿ viciado e corrupto ¿, cujas sementes foram lançadas ainda no Brasil Colônia para germinar o atraso nos quatro cantos da nação.