Título: Triste canção dos desesperançados
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: Gazeta Mercantil, 05/07/2005, Outras Opiniões, p. A13
O vendaval que o deputado Roberto Jefferson desencadeou, com suas múltiplas denúncias desprovidas de provas materiais, causou conseqüências terríveis que ele mesmo previu, quando disse que se caísse cairia com ele a República. Quanto à perda do mandato, mais oito anos sem os direitos políticos, não me parece fora de qualquer dúvida. Esse será o preço a pagar. É de convir que parte de sua previsão está confirmada. Antes de ele cair, já caíram um ministro poderoso e executivos de Furnas, enquanto, apanhado em tantas contradições, e comprometendo o presidente e o tesoureiro do PT, desaba o apontado provedor do dinheiro sujo, já enredado nas malhas da Polícia Federal.
Não me sentia capacitado, até há pouco tempo, a julgar se Roberto Jefferson vingava-se expondo as vísceras putrefatas de gente sem honra, ou se estaria fazendo um diabólico jogo de palavras que - é fora de dúvida - tem tido extraordinária repercussão no povo. A enxurrada de revelações, que reforçam as suspeições levantadas pelo deputado, inclinam-me para a primeira hipótese. O pântano que ele diz existir, na periferia do presidente (a quem sempre poupa talvez por manobra tática), vai expondo, com rapidez inesperada, a sua massa fétida. A sua conduta, de ''nervos de aço'', a forma firme, mas contida, com que responde aos seus pares, observa exemplarmente o tratamento civilizado do debate parlamentar. Corta sem sangrar como, na peça de Shakespeare, Shyloc devia fazer com o devedor ou perder seus bens. O senador Pedro Simon - caráter sem a menor jaça e senhor da dignidade que poucos têm - elogiou-lhe o domínio da tribuna, ainda que sem expressar concordância, desde logo.
Os governistas acusam-no de não aliar às suas denúncias as provas irrefutáveis. Mas, se verdadeira a denúncia, quem confessaria ser cliente do mensalão? Ou a confirmaria o miraculoso provedor dos recursos, rei Midas dessa novela infame? Roberto Jefferson tem tido a seu favor a verossimilhança do muito que disse. Depois de suas verrinas, houve o testemunho de pessoas que delataram o que viveram no lodaçal das fraudes. Isso os doutores em lei dizem serem indícios veementes. Uns, como Marcos Valério, flagrado sucessivamente nas mentiras que usa para defender-se (inclusive o plágio das fazendas inexistentes dadas em garantia). Outros, deputados federais, porque dificilmente convencerão terem sido tomados por súbito e desinteressado amor à governabilidade do presidente Lula. Transferiram-se dos partidos pelos quais foram eleitos, para legendas ligadas ao PT, onde se encarregam do trabalho sujo, preservando dele o próprio PT, cujo manto da ética pretensamente inconsútil já é roto e maculado. Coincidentemente, o amor súbito dos adesistas reduziu de 70 para 50 deputados a bancada eleita pelo PSDB. Igual deserção patriótica reduziu a bancada do PFL, de 84 para 58 deputados. Outra coincidência: a troca volumosa de partidos se deu concomitante com os saques do esperto Marcos Valério, cujo patrimônio material também cresceu enormemente. Não é novidade. Ignázio Silone já dizia nos idos de 1950: ''O governo tem um braço longo e um curto. O longo serve para tomar e chega a toda parte. O curto serve para dar, e só chega aos que lhe estão mais próximos''. Valério é dos mais próximos.
A quantidade de indícios comprometedores levantados por Roberto Jefferson é tal que, se ficcionista, faria inveja, pela riqueza de personagens e tramas, a um escritor como Georges Simenon, que publicou mais de cento e cinqüenta romances policiais, cada capítulo num dia. Pois assim é Jefferson. A cada dia, um novo capítulo das revelações sobre novos personagens. O quadro é tão rico, que intelectuais - e não são poucos - antes históricos participantes e até fundadores do PT, escritores, jornalistas, sociólogos, filósofos, cientistas políticos, ex-guerrilheiros produzem catarses comovedoras. Frustrados, sentindo-se traídos, entoam a triste canção dos desesperançados. O ex-presidente senador José Sarney, político de escol, se pergunta angustiado: ''Será que permaneci mais tempo do que o devido na política?''. Clóvis Rossi revolta-se com quem disse: ''Roberto Jefferson faz a pauta do Brasil''. Mas concede, ao concluir: ''Fujamos, porque quem pauta o Brasil é o pântano''. O ilustre prefeito de Belo Horizonte sai-se com uma facécia de mau gosto: ''Roberto Jefferson acabará acusando João Paulo II''. Mas logo o escândalo apontado em Furnas deixa mal a ironia. No rol dos que viram a esperança virar desilusão, um estudante recorda, de Rui, parte do conhecido libelo: ''De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto''.
Jefferson testemunhou que o presidente Lula chorou quando lhe revelou o mar de lama do seu governo. Mandou acabar com ele. À evidência posterior da continuação do que lhe foi revelado, já se cala. Provavelmente cassado, voltará a advogar. Duvido que Lula lhe dê um cheque em branco, como outrora.