Título: O dia em que mataram wladimir Herzog
Autor: Otto Filgueiras
Fonte: Gazeta Mercantil, 26/10/2004, Política, p. A-9

Ontem fez 29 anos que o jornalista foi morto sob tortura nos porões do Doi-Codi, em São Paulo. A divulgação na última semana de duas fotografias tiradas nas últimas horas de vida do jornalista Vladimir Herzog, assassinado sob tortura nas dependências do Doi-Codi, em São Paulo, em 25 de outubro de 1975, atualizou o passado truculento que o Brasil viveu durante os 20 anos (1964-1984) da ditadura militar. O empresário José Mindlin, na época secretário da Cultura, Ciência e Tecnologia do governador Paulo Egydio, nomeado pelo general Ernesto Geisel, foi um dos protagonistas envolvidos no sangrento episódio, que ontem completou 29 anos. Herzog era diretor de jornalismo da Televisão Cultura, subordinada à Secretaria de Mindlin e foi ele quem o nomeou o jornalista para o cargo.

José Mindlin conta que a contradição entre a linha da "distensão lenta, segura e gradual" de Geisel e a "linha dura" do regime militar, na época, foi o que provocou a prisão de dezenas de jornalistas, entre os quais Vladimir Herzog e seu assassinato sob tortura nos porões do Doi-Codi, órgão subordinado ao Alto Comando do Exército e das Forças Armadas, que funcionava numa delegacia de polícia na rua Tutóia, em São Paulo, e era o principal centro de interrogatório e tortura de prisioneiros políticos durante a ditadura.

Os militares da "linha dura" que eram contra a "abertura" do General Geisel diziam que José Mindlin era simpatizante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) porque havia, diz o empresário, "um jornalista, o Cláudio Marques, que escrevia artigos me chamando de `secretario cor de rosa¿, achando que eu era realmente comunista, e eu nunca tive nenhuma vinculação partidária, porque toda minha formação cultural foi individualista, não aceitava disciplina partidária, mas era a favor de reformas, o País tinha que corrigir as injustiças, e voltar ao regime democrático".

Segundo José Mindlin, o jornalista Vladimir Herzog foi morto porque "se recusou a assinar um depoimento que me incriminava e eles o torturam e o mataram". O empresário conta que diversos "jornalistas presos na época me disseram que tinham sidos interrogados praticamente com mais perguntas sobre mim do que qualquer outra coisa". O jornalista Anthony de Christo era um deles, foi preso naqueles mesmos dias, torturado e interrogado no Doi-Codi sobre as atividade do PCB e também sobre José Mindlin, que não tinha nenhuma ligação com os comunistas.

Mindlin conta que quando houve "o episódio do assassinato de Vladimir Herzog, eu tinha ido na véspera para os Estados Unidos, para participar de um seminário no Texas". O empresário diz que chegou ao Texas no domingo "e tive a noticia da morte do Herzog, mas só consegui voltar para o Brasil na terça feira, porque não encontrei passagem". Mas, do Texas, o empresário telefonou ao Paulo Egydio dizendo que eu não podia continuar no cargo e logo que chegou ao Brasil foi conversar com governador.

"E Paulo Egydio disse que eu estava liberado, porque a combinação tinha sido essa, mas o governador disse também que se saísse ia enfraquecer a linha de resistência à linha dura e me avisou que `eles pegaram o Herzog para pegar você, depois pegariam você para me pegar e me pegariam para pegar o presidente Geisel, de modo que você resolve, está liberado para sair, mas se ficar eu não posso garantir nada porque amanhã todos nós podemos estar ou na rua ou presos¿ e nessas condições não podia deixar o governo de Paulo Egydio, porque o Herzog fora nomeado por mim, pois a Televisão Cultura era ligada à minha secretaria".

Mindlin conta que um ano antes, quando fui convidado pelo governador Paulo Egydio para ser Secretário da Cultura, Ciência e Tecnologia, não quis aceitar, "porque eu era contra o regime militar, era a favor da abertura desde o momento em que houve o fechamento, e não podia fazer parte de um governo nomeado". Na época, Mindlin estava tocando seu trabalho na sua empresa, a "Metal Leve, era contra o regime de força, mas como se falava em transitoriedade e que o restabelecimento da democracia viria logo, foi mais fácil aceitar, inclusive porque Ernesto Geisel tinha assumido o poder com a promessa de abertura política".

O empresário conta que reuniu vários amigos na sua casa e eles disseram que "eu tinha de aceitar o cargo, porque se não aceitasse, a secretaria seria ocupada por alguém que não queria a abertura, e esses amigos me disseram que se não houvesse a abertura eu podia sair, e foi o que eu combinei com o Paulo Egydio".

Mas, no início de 1976, quando o operário Manuel Fiel Filho foi assassinado sob tortura no Doi-Codi, José Mindlin deixou o cargo e um ano depois, ele e outros sete empresários - Antonio Ermírio de Moraes, Cláudio Bardella, Severo Gomes, Laerte Setúbal, Jorge Gerdau Johannpeter, Paulo Vellinho e Paulo Villares - lançaram o "Primeiro Documento dos Empresários", no qual reivindicavam ao governo do general Ernesto Geisel a abertura econômica e política, e a volta do país à democracia. E o episódio do assassinato de Vladimir Herzog despertou o Brasil para que lutasse pela democracia, diz Mindlin.

Na época, a versão divulgada pelos militares foi de que Herzog se "suicidara" na prisão.

Reportagem nunca publicada

Uma reportagem que seria publicada na edição 374 da revista VEJA, mas jamais chegou às bancas, porque o texto foi vetado na íntegra pela censura prévia a que a revista foi submetida durante parte do regime militar, mas circulou pelas redações dos jornais, conta como tudo aconteceu. A matéria começa assim: "Vladimir Herzog, 38 anos, casado, dois filhos, jornalista e professor da Escola de Comunicação e Artes da USP, sabia desde a segunda-feira do dia 20 de outubro de 1975 que estava sendo procurado pelos órgãos de segurança de São Paulo".

Avisado pelo pai de um amigo já detido havia dias em dependências do II Exército de que seu nome havia sido citado em interrogatórios, nem por isso "Vlado" - como os amigos o chamavam -, diz a matéria que nunca foi publicada, não alterou sua rotina de trabalho de chegar às oito da manhã na TV Cultura, onde era diretor do Departamento de Jornalismo, e sair por volta das dez de noite, depois que o principal programa noticioso fora levado ao ar".

Segundo a reportagem, "não tendo sido procurado até a manhã de sexta-feira, dia 24, ele combinou com a mulher, Clarice, e os filhos Ivo, de 9 anos, e André, de 7 anos, uma viagem ao sítio do casal em Bragança Paulista. `Quero passar um fim de semana idílico com a família¿, confessou aos amigos. Isso não foi possível. Pouco antes das 21h30, chegaram à TV dois agentes de segurança, dizendo ter ordens de levá-lo ao Departamento de Operações Internas do II Exército. Por interferência de diretores da empresa e de colegas de trabalho, entretanto, ele pôde passar em casa a que seria sua última noite".

Na manhã daquele sábado de 25 de outubro de 1975, diz a matéria, "Herzog acordou, barbeou-se, tomou banho e despediu-se da esposa com um beijo". Clarice Herzog contou para a revista que "ele estava tão tranqüilo que nem me levantei para acompanhá-lo até a porta". No caminho para o DOI, prossegue o relato, Herzog tomou "café com leite num bar junto com Paulo Nunes, setorista da TV junto ao II Exército, que o acompanhava e, ao chegar às oito horas diante do portão do DOI, à rua Thomaz Carvalhal, 1.030, apresentando-se voluntariamente, mostrava-se tranqüilo e seguro".

No fim da tarde, diz a matéria que nunca foi publicada, Vlado estava morto. "À noite, o comando do II Exército distribuía nota oficial afirmando que o jornalista se suicidara no prisão. E o Instituto Médico-Legal, para onde o corpo foi inicialmente levado, atestou como causa mortis `asfixia mecânica por enforcamento¿. Vlado, segundo a nota, teria se enforcado com uma tira de pano, na sala onde redigira de próprio punho uma declaração em que admitia ser membro do Partido Comunista e em que citava outros jornalistas, alguns já presos. Posteriormente, junto a laudos e fotografias distribuídos pelo II Exército para comprovar suas afirmações, foi divulgado que Vlado, para se matar, amarrara a extremidade superior da tira de pano numa grade a uma altura de 1,63 metro (um pouco inferior à sua própria estatura, de pouco menos de 1,70 metro)".

A reportagem relata que "documento do II Exército, distribuído no fim da noite de sábado, foi seguido de nota do Sindicato dos Jornalistas, que lembrou: `(...) Perante a lei, a autoridade é sempre responsável pela integridade física das pessoas que coloca sob sua guarda¿. Mais adiante, o comunicado dizia: `O Sindicato dos Jornalistas, que ainda aguarda esclarecimentos necessários e completos, denuncia e reclama das autoridades um fim a esta situação, em que jornalistas profissionais, no pleno, claro e público exercício de sua profissão, cidadãos com trabalho regular e residência conhecida permanecem sujeitos ao arbítrio de órgãos de segurança, que os levam de suas casas ou de seus locais de trabalho e os mantêm presos incomunicáveis, sem assistência da família e sem assistência jurídica, por vários dias e até por várias semanas, em flagrante desrespeito à lei".

Somente às 16h30 daquele domingo de 26 de outubro, diz a matéria, "o corpo de Vlado, vindo do IML, chegou ao Hospital Albert Einstein, onde foi velado, acompanhado por jornalistas, professores, atores, intelectuais, amigos e parentes de Vlado, além de políticos do MDB e do cardeal-arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, tudo o que Clarice conseguiu foi ver rapidamente o corpo, já vestido e dentro de um caixão. Em vão ela insistiu na obtenção de um segundo laudo médico - o laudo do IML já fora divulgado pelo II Exército e as exigências legais, assim, estavam cumpridas. O caixão permaneceu fechado até o sepultamento, às 11 horas da segunda-feira".

"Mais de 1.000 pessoas compareceram ao enterro, em cerca de 300 automóveis que se alinharam pela via Raposo Tavares até o quilômetro 15, onde fica o Cemitério Israelita do Butantã. Vlado foi sepultado sem que o Kaddish - oração dos mortos - fosse proferido", diz a matéria da Veja que nunca foi publicada.

Três anos depois, em 1978, a Justiça responsabilizou a União por prisão ilegal, tortura e morte do jornalista. Em 1996, a Comissão Especial dos Desaparecidos Políticos também reconheceu que Herzog foi assassinado no DOI-Codi de São Paulo e decidiu conceder uma indenização para sua família.

Afinal, Vlado foi morto sob tortura. E foram os ratos de pelo côr de oliva e de porrete na mão que o mataram, na tortura.