Título: As aplicações na dignidade
Autor: Luiz Otávio Gomes
Fonte: Gazeta Mercantil, 28/10/2004, Opinião, p. A-3

"Investir na pequena empresa é investir na dignidade." Isso foi dito por Enrique Iglesias, presidente do BID, durante evento internacional realizado em Cartagena das Índias, na Colômbia. Considero essa formulação uma síntese brilhante, e a ouvi como se essa frase tivesse saltado mais alto da fala pausada de uma das maiores autoridades da economia globalizada.

Certamente me chamou mais a atenção por ser a tradução fiel de preocupação minha, e de grande número de pessoas, sobre a importância social do empreendimento de pequeno porte. Faltava-nos definir, entre tantos escritos e posicionamentos, dito dessa contundência e sensibilidade que fugisse à tendência de colocar números em tudo. Aí está, com clareza cristalina, a tradução do valor vital da pequena empresa e a premência de receber apoios e parcerias.

Naquele evento na Colômbia, o centro era a pequena empresa - as Pymes, conforme a sigla em castelhano para o extenso e diversificado universo dos empreendimentos de pequeno porte. No mundo contemporâneo, como se sabe (apesar de haver quem finja não saber) os empreendimentos de pequeno porte representam a única saída para um equilíbrio social entre as principais tendências econômicas globais.

As tendências mais marcantes dessa quadra da história apontam para uma brutal concentração de renda, com o fortalecimento dos macroempreendimentos, que assim o são e serão pelo sucesso em se construírem como centros de alta tecnologia e baixa concentração de mão-de-obra. O aprofundamento do desemprego e a exclusão social são as outras grandes tendências da realidade global. Digo tendências como perspectiva de acentuação desses problemas e não como "previsão", pois tanto uma como outra já se manifestam concretamente há décadas.

Neste nosso mundo globalizado, apenas a pequena empresa pode desempenhar o gigantesco papel de gerar emprego e renda em quantidade e qualidade razoável para assegurar uma mínima circulação de riqueza que garanta o funcionamento desse próprio sistema global. Sem o desenvolvimento da pequena empresa, teremos o inevitável encolhimento dos mercados, pela simples exclusão dos consumidores na ponta do processo.

Apostar na pequena empresa é apostar na cidadania, na inclusão social sem caráter beneficente. Apostar na pequena empresa não é prestar auxílio financeiro, ou técnico, com o fito assistencial, a "fundo perdido", como foi vício no Brasil durante muito tempo. Como bem definiu o presidente do BID, estamos falando de investimento e não de auxílio, socorro, óbolo ou qualquer outra definição da condescendência para com "os mais fracos". Quando falamos na pequena empresa estamos nos referindo aos mais fortes em termos potenciais. Assim, a palavra certa é: investimento.

E esse investimento não pode ser um dispêndio isolado. As pequenas empresas não poderão sobreviver e jogar seu grande papel no mundo globalizado se não estiverem em parceria com o grande empreendimento, se não tiverem acesso aos mercados internacionais e se não se aliarem produtivamente aos macronegócios, como nos casos dos clusters, macroempreendimentos capazes de integrar as diversidades do processo produtivo através de um megaempreendimento central em rede com pequenos empreendimentos complementares.

O pequeno negócio também precisa das grandes políticas para desabrochar. Assim, nos interessa a implementação das alianças entre o poder público e a iniciativa privada (como no caso das PPP brasileiras); para nós é fundamental o funcionamento de fontes de financiamento - nacionais e internacionais - para as MPE (sigla brasileira para as Pymes). Afinal, o pequeno negócio só tem sentido se for globalizado.

Finalmente, o pequeno empreendimento tem como um de seus fundamentos a responsabilidade social, isso desde o seu nascedouro, pois representa a inserção das camadas menos favorecidas no mundo empresarial. Além da formação de uma camada numericamente extensa de donos de seus próprios negócios, a pequena empresa - como dito antes - tem a fantástica capacidade de, mesmo usando as mais modernas tecnologias em seus ramos de produção, empregar uma quantidade de mão-de-obra que, proporcionalmente, nenhuma grande empresa pode mais oferecer no mundo. Essa oferta real de postos de trabalho, pela multiplicação dos empreendimentos de pequeno porte, ultrapassa os limites da "proporcionalidade" para alcançar o valor absoluto de milhões de novos empregos gerados. É a maior oportunidade de inserção social, sem paternalismos, no mundo moderno. Aqui falamos de dignidade em seu sentido mais amplo.

Está certo Enrique Iglesias: investir na pequena empresa é investir na dignidade.

Falta-nos, enquanto poder público e iniciativa privada, entender isso e ser parceiros de verdade nisso que é o investimento do século XXI.

kicker: Sem o desenvolvimento da pequena empresa, os mercados encolherão