Título: O drama de quem mora na rua
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 06/04/2011, Brasil, p. 8

Idosos representam 25% da população adulta que vive sem teto. Gente que sente o peso da idade e o abandono dos parentes

Sem um lar na companhia da família nem uma instituição coletiva que os abrigue, os idosos que moram nas ruas representam o lado mais cruel da exclusão sofrida nessa faixa etária. A situação é vivida por quase 8 mil pessoas, que representam 25% de toda a população adulta que habita viadutos, bueiros ou simplesmente passam os dias ao relento no Brasil. Os desafios do governo para garantir um final de vida digno a esses idosos são tão grandes quanto a luta diária de cada um pela própria sobrevivência. Ernani Fernandes da Silva já sente o peso da idade na rotina. Há tempos, deixou de circular pela área central de Brasília em busca de latas recicláveis. Com as pernas fracas e os pés inchados, o gaúcho de 80 anos depende hoje da caridade de catadores, que levam até ele, em troca de algumas moedas, o material recolhido.

¿É difícil, porque tenho de pagar para o pessoal que me ajuda, então perco dinheiro. Mas o que vou fazer? Minhas pernas doem, não tenho mais força para sair puxando esse carrinho¿, diz Ernani. Ao reivindicar uma indenização por ter ajudado na construção de Brasília, o senhor de rugas marcadas demonstra falta de conexão com a realidade. Também não sabe detalhar o passado, na cidade de Cruz Alta, onde nasceu. Para dizer a idade e o nome completo, Ernani recorre a documentos cuidadosamente guardados em sacos plásticos sobrepostos ¿ tudo para não correr o risco de molhar a carteira de identidade tirada há pouco tempo, caso chova.

Assistente social com mais de 30 anos de experiência na área do idoso, Maria Luciana Carneiro de Barros destaca a situação de vulnerabilidade dos mais velhos em situação de rua exatamente pelo fato de grande parte ter distúrbios mentais, envolvendo dependência alcoólica, além da falta de referência familiar. ¿Aí caímos novamente no problema da ausência de assistência de saúde, além da quase inexistente estrutura de abrigos. Faltam vagas nas instituições de longa permanência e as casas de acolhimento transitório são locais precários¿, diz Luciana. Uma simples pergunta sobre o albergue público do DF foi o suficiente para deixar Ernani completamente transtornado. ¿Prefiro morrer, quero levar um tiro na boca, mas não vou para um lugar daquele, cheio de guerra, cheio de morte¿, reclama o idoso. A Secretaria de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda do DF (Sedest) não autorizou a entrada da reportagem no albergue.

Benefícios Melhor que o albergue público, na avaliação de Ernani, é a barraca de lona azul, que atualmente ele costuma montar próximo ao Hospital de Base, na Asa Sul, à noite. Parte dos poucos pertences ¿ que incluem uma cadeira de plástico branca e o carrinho onde coloca as latas recicláveis ¿ foi comprado com o salário mínimo que ele recebe de benefício da Previdência Social. Tal assistência, porém, não chega a todos os idosos nas ruas. De roupas rasgadas, pele escura e cabelos embranquecendo, o homem que se apresenta apenas como Severino vive, exclusivamente, da caridade alheia. Há meses dormindo na Praça do Relógio, no centro de Taguatinga, ele pede comida aos donos de restaurantes. Comerciantes e taxistas do local apontam o idoso, que diz ter ¿sessenta e tanto¿, como um homem calmo, educado e sem vícios.

Apesar da convivência pacífica, o passado de Severino é quase desconhecido pelas pessoas que o auxiliam, de alguma forma, todos os dias. Nascido em São José do Egito, em Pernambuco, ele diz que não sabe como veio parar no Distrito Federal. ¿Não me lembro, não. Só sei que fico por aí, andando¿, diz Severino. Os gestos repetidos de retorcer os dedos das mãos, levando-as para debaixo da blusa, deixam evidente a condição física e mental prejudicada do idoso. Lúcida, Francisca Pedro da Silva é moradora há 23 anos de um acampamento localizado a poucos metros do Palácio do Planalto, onde o presidente da República trabalha. Durante todo esse tempo, ela catou papel reciclável, chegando a formar uma cooperativa. Mas a dormência nas pernas, sentida há cerca de oito anos, tornou-se mais forte ultimamente, levando-a a diminuir o ritmo de trabalho da época quando veio para Brasília.

¿Lá no norte, a gente via Brasília na televisão e pensava que ia mudar de vida quando chegasse aqui. Hoje, nem sei se fiz bem em ter vindo¿, lamenta a mulher, que diz ter 61 anos, 38 netos e dois bisnetos, mas sem revelar a quantidade de filhos. A assistente social Luciana observa uma presença forte de idosos morando nas ruas do DF atraídos pela onda migratória que marcou a história da capital. ¿Gente que acreditou na perspectiva de conquistar alguma coisa na nova cidade e, com a frustração de não ter conseguido, acabou tendo uma quebra dos vínculos familiares¿, explica a especialista.

A assistente social destaca também que muitos idosos preferem a rotina da rua a serem abrigados em uma instituição de longa permanência. ¿Temos casos de pessoas que voltam, porque gostam do descompromisso, porque já fizeram amizades, além do que o brasiliense é muito solidário. Então, pelo menos comida eles conseguem¿, diz Luciana. Francisca garante que se ganhasse uma casa deixaria a rua, ao lado do marido, Rosival Albino dos Santos, de 72 anos. Para Socorro, filha do casal, que conseguiu sair da rua e hoje mora em um imóvel no Recanto das Emas, falta esclarecimento aos pais, que são analfabetos. ¿Eu tomei a frente da cooperativa para ajudar, para melhorar a situação deles. Mas acho que eles já perderam oportunidades por não entenderem bem as coisas, por não saberem como tudo funciona¿, lamenta Socorro.