Título: Fim da linha para Gbagbo
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 06/04/2011, Mundo, p. 18

Acuado no palácio e cercado pelas tropas da ONU e do rival Alassane Ouattara, o presidente se nega a reconhecer a derrota eleitoral. Moradores de Abidjan relatam drama e analista vê guerra perto do final, após Exército abandonar o líder

¿Reúnam a família e rezem o livro do Apocalipse, capítulo 12, e os salmos 35, 91 e 140. Que Deus abençoe a Costa do Marfim.¿ A ordem aos simpatizantes do governo, divulgada pela emissora estatal Radiodiffusion Télévision Ivoirenne, expressava ontem o desespero do presidente Laurent Gbagbo, refugiado em um bunker do palácio presidencial, em Abidjan, enquanto negociava sua rendição. Se o capítulo 12 do livro do Apocalipse cita a vinda do demônio à Terra, o famoso salmo 91 exorta a proteção divina. ¿Caiam mil ao teu lado, e 10 mil à tua direita; tu não serás atingido¿, afirma o texto bíblico. Recolhido em sua casa, enquanto corpos se espalhavam pela capital, o marfinense Yao acredita que a crise em seu país tem explicação espiritual. ¿É a primeira vez que vivemos algo assim; eu deposito meu destino nas mãos de Deus¿, justificou, em entrevista ao Correio, pela internet, durante o toque de recolher. Para ele, Gbagbo não tem opção, a não ser a renúncia. ¿Ele está encurralado pela comunidade internacional e, com a deserção de seus generais e de seu Exército, deve sair¿, comentou.

As agências de notícias chegaram a anunciar, no início da tarde de ontem, que Gbagbo entregara o poder. A Reuters citou um documento da Organização das Nações Unidas, segundo o qual ¿o presidente se rendeu e pediu proteção à Unoci (Operação da ONU na Costa do Marfim)¿. Horas depois, a informação foi desmentida pelo próprio presidente, que se recusa a aceitar a vitória do rival Alassane Ouattara nas eleições de novembro passado.

¿O Exército fez um chamado à suspensão das hostilidades. E está atualmente discutindo as condições de um cessar-fogo com outras forças, mas, em um nível político, nenhuma decisão foi tomada ainda¿, avisou Gbagbo, em entrevista à rede de tevê francesa LCI. ¿Eu venci as eleições e não estou negociando minha saída. Não reconheço a vitória de Ouattara. Por que querem isso?¿, questionou. Ele criticou o pedido da ONU e da França para que assine a renúncia. ¿Parece-me assombroso que a vida de um país dependa de um jogo de pôquer de capitais estrangeiras¿, atacou.

Apesar da retórica desafiadora, Gbagbo sabe que está sozinho e acuado. ¿A guerra acabou¿, garantiu à TV Al-Jazeera Yj Choi, representante especial do secretário-geral da ONU, Ban ki-moon, para a Costa do Marfim. ¿Todos os generais que lutavam ao lado dele desertaram, está acabado. Sem Exército, não há combates¿, emendou. Pelo menos três oficiais de alta patente e próximos ao presidente telefonaram para a Onuci e assinalaram que ¿as forças de defesa e de segurança receberam a ordem de se render aos capacetes azuis da ONU e de buscar proteção¿. Apesar da postura desafiadora de Gbagbo, Yj Choi disse à agência Associated Press, na noite de ontem, que o líder estava discutindo os termos de uma fuga. ¿O que eles negociam agora é para onde Gbagbo poderá ir¿, explicou, afirmando que uma renúncia parecia iminente.

Democracia Por telefone, Ayo Johnson ¿ um leonês especialista em África e diretor do site Viewpoint Africa ¿ afirmou à reportagem que a Costa do Marfim precisa se preocupar agora com a reconquista da democracia. ¿O país necessita de um ciclo completo de eleições, com o povo escolhendo seus líderes. O muçulmano Ouattara será obrigado a criar uma fórmula para atrair a população do sul, cristã e pró-Gbagbo¿, observa. ¿Sem um processo de unificação, os problemas que levaram a uma guerra civil, 10 anos atrás, persistirão.¿ De acordo com Johnson, mesmo que o conflito se encerre, a mágoa entre grupos rivais é uma ameaça à paz. ¿Muitos civis perderam a vida, milhares estão desabrigados e existe uma animosidade entre os muçulmanos do norte e os cristãos do sul¿, disse.

Sem poder sair de casa, o publicitário Hassan Halaoui relatou ter visto pela televisão vários corpos espalhados pelas ruas de Abidjan. ¿Vemos tantas coisas horríveis diariamente¿, desabafou ao Correio, pela internet. ¿Vi pessoas serem queimadas vivas por marfinenses de outras etnias¿, relatou. Ele também jura que guerrilheiros apelam ao vodu e usam forças místicas.

¿Quando eles têm armas diante deles, simplesmente desaparecem¿, garante. O Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (Ocha) alertou para a situação humanitária ¿absolutamente dramática¿. A porta-voz, Elisabeth Byrs, revelou que a maioria dos hospitais não funciona e ambulâncias são alvos de tiros. Por sua vez, Luis Moreno-Ocampo, promotor do Tribunal Penal Internacional (TPI) afirmou que abrirá uma investigação sobre o massacre ocorrido em Duekoue (oeste) ¿ entre 29 de março e 31 de março passado, mais de mil pessoas foram mortas na cidade. Até as 22h de ontem (hora de Brasília), Gbagbo não havia renunciado