Título: Democratas e republicanos têm interesse na Alca
Autor: Claudia Mancini
Fonte: Gazeta Mercantil, 03/11/2004, Internacional, p. A10

Além do comércio, contencioso com o Brasil inclui agora inspeção nuclear. No próximo governo dos Estados Unidos, quem quer que seja sagrado vencedor, o Brasil deve se preparar para encontrar um interesse de Washington na retomada das negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) - pois isso faz parte dos planos de democratas e republicanos, disseram assessores dos candidatos dos dois partidos a este jornal. "Temos uma chance muito melhor com Bush (de a Alca acontecer), porque ele está compromissado com isso", afirmou Otto Reich, assessor para América Latina na campanha de George W. Bush.

"Com John Kerry, a (discussão da) Alca vai voltar", disse Nelson Cunningham, assessor para o Hemisfério Ocidental do senador democrata. Mas será no comércio - incluindo essa negociação e outras, como a da Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC) - e na questão de processo brasileiro de enriquecimento de urânio, que deverão estar as maiores possibilidades de atrito entre o País e os americanos, segundo Peter Hakim, presidente do Inter-American Dialogue, centro de análises de questões do continente, com base em Washington.

Analistas e equipes dos dois candidatos descartaram a hipótese de adoção de protecionismo, devido ao alto déficit comercial dos EUA. Porém, para alguns analistas, negociar acordos com os democratas pode ser mais complicado. Cunningham afirmou que, realmente, para os próximos tratados, os democratas querem garantir maior respeito ao meio ambiente, às leis trabalhistas e aos direitos de defesa comercial dos EUA, por meio de medidas anti-dumping e compensatórias. São temas que causam certa preocupação no Brasil, pelo temor de que atrapalhem o fluxo comercial, servindo como proteção ao mercado norte-americano.

Meio ambiente e trabalho

Segundo Cunningham, os democratas querem colocar meio ambiente e trabalho no mesmo patamar de alta prioridade em que os republicanos colocaram propriedade intelectual. Democratas tendem a ter esse tipo de visão, e nesta disputa eleitoral novamente receberam apoio de ambientalistas e sindicatos. Os democratas avaliam que os republicanos falharam na aplicação dos direitos americanos em diferentes situações no comércio internacional, como em disputas com a União Européia e no acordo com a China.

Um eventual diálogo mais fácil com democratas, que tendem a ser menos unilateralistas, do que com os conservadores republicanos, não significa melhor atendimento dos desejos comerciais brasileiros. Cunningham disse que o Brasil tem de fazer um grande esforço para abrir seu mercado. "A transição (para maior abertura) tem de vir algum dia". Perguntado sobre a demanda brasileira por maior acesso ao mercado agrícola americano, sua resposta foi a de que "a negociação de um acordo será honesta". E que os democratas buscarão uma forma de liberalização que faça sentido, política e economicamente.

O assessor de Kerry afirmou que quando o candidato falou em revisar os acordos comerciais do país em 120 dias, quis dizer estudá-los, para verificar o que funcionou e o que não deu certo, e se os direitos norte-americanos estão sendo aplicados, para garantir melhores acordos no futuro, inclusive na Alca. O acordo com os países centro-americanos é que não tem mesmo apoio dos democratas. Segundo ele, "as questões trabalhistas e de meio ambiente estão protegidas de forma inadequada". O tratado ainda não foi enviado ao Congresso por Bush porque, pela reação democrata, ficou claro que não seria aprovado. "Mesmo se Bush for reeleito, o acordo terá de ser renegociado", afirmou.

Nessas eleições, em que também há cadeiras em disputa na Câmara e no Senado, poucas mudanças devem ocorrer no Congresso e, portanto, no jogo de forças dentre dessas casas. Até o fechamento desta edição, a previsão era de que, na Câmara, os Republicanos continuariam a dominar. No Senado, mesmo se a maioria voltar a ser democrata, seria por pequena margem.

De acordo com Hakim, apesar de diferenças entre os dois países, hoje o Brasil tem bom relacionamento com os EUA. Washington reconhece "um certo papel de liderança" do País na América do Sul e em alguns foros, como na OMC, e vê com bons olhos a manutenção da política econômica disciplinada. Mas a questão do urânio, afirmou, pode gerar atrito porque, "se o Brasil não seguir tratados internacionais, pode abrir precedente para outros países fazerem o mesmo". O Pais mostrou reticência em abrir, para inspetores internacionais, a tecnologia de enriquecimento.

América Latina

Na próxima administração americana, que começa em janeiro, independentemente do vencedor, a região continuará fora das maiores prioridades dos EUA, afirmou Hakim. Na frente estarão o combate ao terrorismo, a busca de solução para a situação no Iraque e outras questões como as nucleares, envolvendo a Coréia do Norte e o Irã, mais ameaçadores do que a processo brasileiro de enriquecimento do urânio. Sem ser uma ameaça e nem, por exemplo, crescer 9% ao ano, com 1,3 bilhão de habitantes como a China, dificilmente os latino-americanos chamarão mais atenção, afirmou Hakim.

"A coisa mais importante que um presidente precisa pensar é em defender seu país", disse Reich, que até junho trabalhou como enviado especial de Bush para a região. "A maior prioridade é o Iraque, onde há 130 mil soldados americanos, e a caça aos terroristas", afirmou Cunningham, que trabalhou para o governo de Bill Clinton.

Para Hakim, seria difícil imaginar que qualquer candidato reservasse prioridade estratégica para a América Latina, com a qual, nos últimos quatro anos, Washington teve mais relacionamentos bilaterais, do que um regional. Para ele, na história mais recente, o relacionamento entre EUA e América Latina começou a se deteriorar em meados da década de 90, quando a região entrou numa crise econômica. Também contribuiu para isso a saída do enviado especial Thomas Mack McLarty do governo, no início da primeiro mandato de Clinton. Quando saiu, a importância da América Latina mudou, disse. O ex-assessor é presidente da Kissinger & Mc Larty Associates, uma sociedade com o ex-secretário de Estado Henry Kissinger, e da qual Cunningham é sócio-diretor.

Cunnhingham afirmou que Kerry fez um plano para a região, que não precisa ser relegada, porque um país como os EUA podem cuidar de mais de uma área ao mesmo tempo. E que, ao lidar com a América Latina, o governo lida também com a população latina, que já é a maior minoria no pais. O plano pensado pelos democratas inclui uma Comunidade das Américas, para ações para o desenvolvimento econômico e social da região. Segundo ele, o senador apóia a concessão de mais recursos, tanto que propôs um fundo de US$ 500 milhões ao ano, para ações que beneficiariam, por exemplo, microempresas, parcerias público-privadas e programas sociais. Cunningham disse que não estaria descartada a ajuda ao Brasil, mas que o País tem recursos que outras nações mais pobres não têm. O plano também inclui fortalecimento da democracia na região, por meio, por exemplo, da criação de um conselho dentro da Organização dos Estados Americanos (OEA), que daria assistência a países com problemas nessa questão.

Segundo Reich, Bush não deixou de dar atenção à América Latina. Tanto que negociou e negocia acordos comerciais com a região, e promoveu programas de ajuda, como um de combate à corrupção, que acabou tornando-se mundial, e de desenvolvimento, que hoje beneficia Nicarágua, Honduras e Bolívia. Bush também encontrou todos os presidentes da região eleitos democraticamente, e tem tido bom relacionamento com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, embora muitos achassem que isso não ocorreria, visto que Lula foi sindicalista e Bush é um republicano conservador.

kicker: Prioridade continua sendo o Iraque, onde há 130 mil soldados americanos

kicker2: Bush e Lula têm bom relacionamento, apesar das diferenças na trajetória