Título: Duplo déficit desafia o novo...
Autor: Claudia Mancini
Fonte: Gazeta Mercantil, 03/11/2004, Internacional, p. A11

Analista diz que próximo governo será obrigado a pedir aumento de impostos ao Congresso. Pelos cálculos do EPI, se as políticas atuais forem mantidas, o buraco entre despesas do governo e receitas com impostos continuará nos próximos anos em patamares similares ao atual, de em torno de 3,5% do PIB. Isso significa continuar acumulando, anualmente, altos níveis de dívida. Por isso, Lee Price acredita que o próximo presidente terá de pedir aumento de impostos ao Congresso. Kerry já avisou que vai fazê-lo, para os mais ricos e para dividendos em bolsa. Nelson Cunningham, seu assessor para assuntos de economia internacional, disse que não é difícil cortar o déficit nos próximos quatros anos, em parte porque a economia vai crescer. Bush diz que manterá os cortes já feitos e que quer torná-los permanentes. Quanto pedirão de aumento é que pode ser a diferença, diz Price, que defende que um país como os EUA tem capacidade para manter um déficit fiscal de em media 1,8% ao ano, sem problemas para financiá-lo.

Para Ricardo Amorim, que chefia a área de pesquisas em América Latina do banco WestLB, o senador democrata teria mais chances de reduzir o déficit, embora seus planos incluam aumentar gastos, por exemplo, com saúde. Como o Congresso norte-americano deve continuar dominado pelos republicanos, e no Senado a maioria, se permanecer com o partido, continuará pequena, Kerry teria mais dificuldade de conseguir aumentar gastos, afirmam alguns economistas. Amorim chama a atenção para o fato de que os discursos de Bush e de Kerry foram de mais rigor fiscal, e isso pode significar cortes de despesas, com impacto para o Brasil.

O aumento das taxas de juros é um dos maiores riscos que a situação norte-americana coloca ao Brasil. Isso porque se os países, como os asiáticos, que financiam o déficit do governo deixarem de fazê-lo, a entrada de capital nos EUA cai e deve ser seguida por aumento de juros. Isso pressionaria o Brasil a acompanhar o movimento de alta, para não perder capital para o mercado norte-americano, e aumentaria o custo do capital para o País. Um outro efeito dos juros é que poderiam esfriar o mercado imobiliário norte-americano, que anda bem aquecido, porque os custos das hipotecas estão convenientes. Segundo Amorim, se esse custo da hipoteca subir, vai afetar a renda dos milhões de americanos, os quais terão menos dinheiro no bolso e verão seus patrimônios perderem valor. Por tabela, devem tender a consumir menos, afetando as vendas de outros países para os EUA.

O desinteresse em se continuar financiando a dívida americana pode também levar a uma queda da cotação do dólar, frente a outras moedas, e a conseqüência poderia ser um aumento das exportações norte-americanas e, pelo menos, queda no ritmo de crescimento das importações. Isso ajudaria a dar maior equilíbrio da conta corrente americana, que carrega o peso de um déficit comercial de US$ 560 bilhões, em 12 meses ate agosto. Mas há sempre o risco de aumento de juros. E o dólar mais desvalorizado afetaria vendas de países como o Brasil para os EUA em volume e em preço, além de tornar os americanos mais competitivos no mundo.

Price afirma que os EUA podem tentar convencer os governos asiáticos e europeus de que é preciso uma valorização de suas moedas ante o dólar para reduzir a pressão sobre a balança comercial, um tipo de conversa que já se teve há duas décadas. Isso poderia tornar o ajuste mais controlável do que uma debandada dos mercado de títulos dos EUA. Segundo o economista, o mundo esta de olho no que os asiáticos farão. Eles podem, em algum momento, decidir sair do mercado porque avaliam que o risco dos déficits esta muito alto (o que pode levar à queda do valor desses títulos), por questões internas ou porque sofreram algum tipo de medida protecionista nos EUA, afirma Amorim.

Mas, para o economista do WestLB, o superávit comercial dos asiáticos deve evitar esse tipo de movimento no curto prazo. Para alguns analistas, enquanto a China tiver mão-de-obra para crescer, em boa parte, por meio de exportações, Pequim pode continuar interessada nos títulos americanos, para dar um destino aos dólares que arrecada com suas vendas externas. Os chineses têm um superávit importante no comércio com os EUA, que vivem pressionando Pequim a valorizar sua moeda.

Michael Mussa, ex-economista chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), avalia que o dólar teria de ser desvalorizado em 20% para o déficit em conta corrente cair para 2% nos próximos anos, segundo documento divulgado pelo Brookings Institute, com base em Washington. Um patamar maior que 2% aumentaria muito a possibilidade de uma crise, segundo o economista. Price acha que 20% é pouco. O percentual precisaria ser de pelo menos 30%, porque a economia dos EUA tem um enorme apetite por comprar importados. Com 30%, o déficit cairia para 3%, segundo afirma o Goldman, Sachs, num relatório recente. "Mesmo levando em conta a queda de cerca de 10% na cotação do dólar desde o pico no início de 2002, o dólar apenas caminhou menos da metade do caminho necessário", afirma o documento.

Por enquanto, o debate nos EUA sobre como resolver o problema dos déficits é brando. Um dos motivos é porque há dinheiro para financiar a economia e a juros atraentes. Se começar a faltar recursos e os juros subirem, a gritaria pode começar. Um sinal da falta de preocupação com a situação, pelo lado dos consumidores, é de que estão gastando mais do que a renda está crescendo. De setembro de 2003 a setembro deste ano, a renda pessoal real disponível aumentou 2,5% e o consumo real cresceu 3,8%. Os americanos estão economizando muito pouco, a uma taxa de 0,4% no último trimestre, o que difícilmente garante suas aposentadorias. disse Price. "Isso é insustentável", afirma ele, que em 1996 trabalhou como economista para o presidente Bill Clinton.

Mas do lado do setor privado, há receios. Um outro estudo do Goldman, Sachs divulgado nesta semana mostra que o índice de confiança dos CEOs sobre as perspectivas de negócios nos EUA caiu para 54,2 no quarto trimestre, com a medição sendo feita em outubro. É a terceira queda consecutiva. Na leitura feita em fevereiro, o índice havia chegado a 94,1.

Os economistas William Gale e Peter Orszag, do Brookings Institute, afirmam num artigo que cada ponto percentual de PIB de déficit fiscal atual reduz a taxa de poupança em 0,5% a 0,8% do PIB. Daí para frente há efeito sobre a renda nacional e há pressão para os juros subirem.

Para Price, o que a economia americana precisa agora é de um crescimento motivado pelas exportações. "Desde 1997 temos tido um grande influxo de capital externo que impulsionou o setor imobiliário, mas afetou a indústria para o comércio exterior. Nos próximos cinco a dez anos, o lado do comércio precisa ter desempenho melhor".