Título: Retórica contra o terror dá vitória a Bush
Autor:
Fonte: Gazeta Mercantil, 04/11/2004, Opinião, p. A3
No mais concorrido pleito das últimas décadas, o republicano George W. Bush, 58 anos, venceu o democrata John F. Kerry, 60 anos, reelegendo-se presidente dos Estados Unidos, por uma margem de votos mais ampla do que faziam supor em geral as pesquisas de opinião. Bush consagrou-se como o presidente mais votado da história democrática dos Estados Unidos, tendo obtido quase 59 milhões de votos (51% do total) contra os 55,1 milhões (48%) dados a Kerry - uma diferença de pelo menos 3,5 milhões de votos, vitória inequívoca que afasta o risco do caos jurídico que atrasou em 36 dias o resultado da eleição de 2000, precipitando os mercados na incerteza. Desta vez, a acolhida da definição pelas urnas afasta qualquer possibilidade de suspeita de fraude na apuração e de legitimidade do mandato, como ocorreu na primeira eleição de Bush, quando, depois de ter perdido no voto popular, foi conduzido à Casa Branca por decisão da Corte Suprema.
Para votar na 55 disputa presidencial para a Casa Branca e na 109 para o Senado - a primeira depois do 11 de setembro e da invasão do Iraque - registraram-se mais de 10 milhões de novos eleitores, elevando o total de possíveis votantes a 143 milhões, numa demonstração do grande interesse que despertou, tendo polarizado os ânimos a ponto de se ter convertido num referendo sobre um dos mais polêmicos presidentes dos EUA.
A campanha de 2004 será lembrada pelo seu caráter paradoxal em mais de um aspecto. A grande democracia, referência para todos os países democráticos, exibiu, nos embates da campanha, as entranhas corroídas de um processo eleitoral confuso, antiquado, corrupto e antidemocrático. Analistas políticos atribuem-lhe dimensão histórica, embora tenha consistido na reafirmação da mesmice, que de novo traz a consagração plebiscitária do velho - o jeito Bush de governar, que tantas apreensões trouxe ao mundo, com o seu unilateralismo autista, a agressividade de sua guerra preventiva e o seu desprezo pelo multilateralismo e pelos direitos civis. Do ponto de vista interno, o resultado do pleito significou a vitória da continuidade na grande guinada neoconservadora, iniciada com Ronald Reagan, que agora mistura mais do mesmo, num amálgama poderoso de ultraliberais, nacionalistas e fundamentalistas cristãos.
Venceu a retórica antiterror, que, associada ao radicalismo de direita e a um profundo apelo à religião, suplantou a exploração pelo adversário Kerry dos erros econômicos da atual administração. Bush reelege-se tendo concluído o primeiro mandato com o mercado de trabalho apresentando um número maior de desempregados do que quando assumiu.
A disputa presidencial nos EUA não é um fato comum. Por se tratar da maior economia do planeta, os EUA ocupam um lugar único no mundo, que se caracteriza pelo seu poder de influir, deliberadamente ou não, no destino das demais nações. A ação diplomática dos EUA ultrapassa países e continentes - daí a natural indagação sobre se Bush, em seu segundo mandato, vai introduzir mudanças na sua política interna e externa.
Parece improvável que o segundo mandato de George W. Bush fuja ao roteiro percorrido no primeiro, em ambas as frentes. A expectativa é que tudo continue sendo como antes - da expansão do déficit fiscal recorde ao incremento do déficit comercial, também recorde, à postura sobranceira na defesa imediatista dos interesses nacionais acima de considerações de qualquer outra natureza.
Assim, na política econômica, acredita-se que Bush não vai antecipar uma estratégia de correção nas contas internas e externas, que reduza a vulnerabilidade econômica da superpotência, afligida por déficits monumentais. Como prioridade, o eleitorado elegeu a guerra contra o terror: os déficits não inquietam - ao contrário, parecem convir ao público interno, por seu efeito expansionista sobre a economia, e ao externo, ao atender aos interesses imediatos dos parceiros comerciais, na medida que contribuem para a expansão de suas respectivas economias. Na agenda política não deverá haver mudança a ponto de alterar as relações do país com a Europa, marcadas por divergências sobre o uso da força militar, a legitimidade e o papel das instituições multilaterais, a solução do conflito palestino-israelense e a guerra contra o terror.
Para a América Latina e para o Brasil, o comércio exterior é a questão mais relevante. Espera-se que logo sejam retomadas as negociações para a criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), nas quais o País voltará a pleitear concessões que conduzam à formulação de uma proposta menos desvantajosa do que as discutidas até agora.
Para imprimir, enviar ou comentar, acesse:
www.gazetamercantil.com.br/editorial
kicker: O discurso eleitoral de Bush contra o terror venceu o de Kerry, que explorou, sem sucesso, os erros do adversário na economia