Título: Em busca do padrão nacional da TV Digital
Autor:
Fonte: Gazeta Mercantil, 25/08/2004, Opinião, p. A-3
Dúvidas - se ainda havia -, quanto ao interesse do governo em patrocinar o desenvolvimento de tecnologia nacional para a implantação do Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD), estas se dissiparam na semana passada quando o ministro das Comunicações Eunício de Oliveira confirmou a decisão oficial, ao anunciar que o edital para a contratação das entidades de pesquisa será lançado em 10 de setembro. As propostas terão de ser apresentadas até março de 2005.
Como era esperado, a notícia foi recebida com entusiasmo por acadêmicos e profissionais da pesquisa tecnológica nacional. Também o mercado vê com interesse o governo mexer-se numa decisão de Estado, que deverá estimular os negócios ao tornar possível a associação entre o e-commerce e o t-commerce (comércio televisivo), num país em que a televisão é a principal fonte de informação, entretenimento e cultura, com 60 milhões de aparelhos de tv presentes em cerca de 90% dos lares. As diretrizes determinam que os canais de TV Digital sejam abertos e tornem possível o acesso à internet, criando-se assim a possibilidade do uso interativo dos dois meios de comunicação no mesmo aparelho.
O governo destinará R$ 65 milhões em recursos do Fundo Nacional de Telecomunicações (Funtel) para o projeto, a ser conduzido por consórcios entre universidades, instituições e centros nacionais de pesquisa. Até a semana passada, 82 entidades haviam sido habilitadas pelo grupo gestor do SBTVD. Mesmo que a iniciativa não resulte em um padrão nacional completo, afirmou o ministro, o Brasil disporá de melhores condições de negociação com os detentores dos padrões existentes - ATSC, norte-americano, DVB, europeu e ISDB, japonês.
Ao apoiar o desenvolvimento de um padrão brasileiro, o Ministério das Comunicações lança água fria no calor da polêmica entre os defensores das soluções importadas, que brandem dossiês uns contra os outros, na tentativa de demonstrar a suposta excelência de sua proposta de padrão. A polêmica esquentou no vazio normativo do governo anterior, que se inclinava por simples solução de mercado, sob a alegação de que não convém reinventar a roda.
A transição do sistema de transmissão analógico para o digital não representa apenas uma evolução tecnológica, mas também uma nova plataforma de comunicação, capaz de oferecer aos usuários os benefícios associados à plena interatividade, tanto entre os atuais emissores e receptores (unidirecional) quanto entre os atuais receptores (multidirecional).
A questão transcende o aspecto da pesquisa tecnológica e implica outras dimensões, como o impacto social do custo da transição entre os sistemas e a prioridade da inclusão digital, ou seja, o interesse nacional.
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez saber, em abril de 2003, que nenhum dos padrões estrangeiros propostos contempla a singularidade da realidade brasileira, no que diz respeito à magnitude do desafio da inclusão social, motivo por que se decidiu por apoiar o desenvolvimento de um padrão nacional.
De fato, como diz o edital de qualificação dos grupos de pesquisa, essa é uma ocasião propícia para a busca de uma solução técnica inovadora, capaz ao mesmo tempo de manter e aproveitar a compatibilidade com elementos já padronizados no mercado mundial de TV digital e de apresentar a flexibilidade necessária para sua adequação às condições sócio-econômicas do Brasil. Está-se diante da oportunidade de estabelecer e ampliar a rede nacional de competências, promovendo a integração da pesquisas brasileira nas áreas de abrangência do projeto. Também a China optou por desenvolver o seu próprio padrão, a partir de uma síntese do que há de melhor nos existentes.
Dessa forma, poder-se-ia também aproveitar o parque nacional instalado de televisores e dispor de um padrão configurável para potencial adoção por outros países. Como principal mercado da América Latina, o Brasil pode tornar a TV Digital um bom negócio, constituindo-se numa plataforma de exportação de componentes e equipamentos. Considerem-se, além disso, as vantagens em termos de redução da dependência tecnológica e do pagamento de royalties e licenças, que contribuem para onerar a balança comercial.
Aos que advertem contra o risco de se reinventar a roda, lembra-se que em matéria de desenvolvimento de padrões muita inovação deixará de fluir unidirecionalmente dos países desenvolvidos para o Terceiro Mundo. Nessa questão, importa observar antes de tudo a evolução da distribuição espacial do consumo mundial, tendente atualmente a favorecer os países emergentes.