Título: Metrópoles sem excluídos
Autor: Olívio Dutra
Fonte: Gazeta Mercantil, 05/11/2004, Opinião, p. A3

Representantes de governos, de organizações não-governamentais e de movimentos sociais, além de especialistas em questões urbanas de todas as nações, estiveram reunidos na segunda edição do Fórum Urbano Mundial, em Barcelona, na Espanha, para debater uma indagação: "As cidades são lugar de encontro de culturas, inclusão e integração?" Por uma série de razões - entre as quais a principal é o fato de só há pouco, com considerável atraso, termos começado a encarar seriamente os problemas que a urbanização coloca à nossa frente -, acredito ainda estar distante o dia em que poderemos responder positivamente a tal pergunta.

Embora a vida urbana esteja sujeita a constantes transformações, com mudanças nos modos de ocupação do espaço, uma constante não escapa nem mesmo ao olhar menos observador: nas grandes cidades, a diferenciação das classes sociais expressa-se em separações, tanto físicas quanto simbólicas, que, como já foi assinalado por estudiosos do fenômeno, tolhem a sociabilidade, reforçam a fragmentação e inferiorizam determinados segmentos. A concentração das populações pobres em territórios delimitados, desprovidos dos serviços mais essenciais, sanciona sua desclassificação, promovendo uma segregação socioespacial que condena as camadas da população desprovidas de recursos a uma existência de párias, sem perspectivas de melhora, mesmo a longo prazo.

A tese levada ao fórum pelo Brasil (que recebeu o endosso das representações da Argentina, África do Sul, Canadá, Quênia e Uruguai, foi alvo de manifestações de interesse da França e da Índia e mereceu quatro menções no relatório-base do encontro) aborda o problema do acesso social à cidade e propõe meios de ampliar seus limites e suas possibilidades para interromper a preservação e a reprodução de mecanismos caracterizados pela perversidade.

Despertamos o interesse do economista Jeffrey Sachs, consultor especial do secretário- geral da ONU, Kofi Annan, pela proposta brasileira. Ele propôs a realização de uma reunião - na sede da ONU, em Nova York, ou no Brasil, no início de 2005. A idéia é reunir representantes de países que tenham um perfil socioeconômico parecido com o Brasil (Marrocos, Argentina, México, África do Sul, entre outros) para discutir exatamente como esses países podem atingir tais metas, considerando o relacionamento com organismos internacionais de financiamento.

Nossas metrópoles devem abandonar o modelo de segregação social e proporcionar oportunidades a todos. Nos anos 90, o paradigma dominante de política urbana agravou as condições urbanas, com o aumento da favelização e da miséria.

Para reverter esse quadro, é necessário rever caminhos institucionais e estratégias até agora adotadas, preferencialmente com um amplo acordo entre países no âmbito de uma ordem econômica global. Só um pacto internacional baseado numa nova engenharia econômico-financeira que permita aumento significativo de investimentos e subsídios em habitação e saneamento para os mais pobres possibilitará que estes apliquem os recursos necessários a uma política urbana efetivamente inclusiva.

No ano 2000, os Estados membros da Organização das Nações Unidas, ao definirem

as Metas do Milênio, acertaram reduzir pela metade, até 2015, o percentual de pessoas que carecem de acesso sustentável a água potável e serviços básicos de saneamento e, até 2020, alcançar uma melhoria significativa na situação de pelo menos 100 milhões de moradores em assentamentos precários. Em nosso país, 85 milhões de habitantes não têm acesso a água potável e 15 milhões não dispõem de moradia digna. Do nosso déficit habitacional, que é de 6,6 milhões de moradias, 92% estão concentrados entre famílias com renda mensal de até cinco salários mínimos.

Precisaríamos de um investimento constante de R$ 20 bilhões por ano, nas próximas duas décadas, para garantir moradia e saneamento às famílias de baixa renda. Para romper o círculo vicioso da modernidade segregadora, são necessários recursos subsidiados, que exigirão ampla participação do Estado.

O descompasso entre o avanço na base material da economia e o arcaísmo das estruturas sociais pode ser superado se houver empenho na criação de mecanismos práticos que promovam a integração das camadas excluídas. É o que o Ministério das Cidades vem fazendo, ao adotar um padrão de planejamento urbano democrático e consistente, que obedece a princípios de eqüidade. No Fórum de Barcelona, a participação brasileira contribuiu de maneira expressiva para conscientizar a comunidade internacional de que deve nascer um novo relacionamento entre países que se esforçam por cumprir as Metas do Milênio e as agências de financiamento. Só assim poderemos apressar a chegada do dia em que nossas cidades serão, finalmente, para todos.

kicker: Nossas cidades devem abandonar o modelo de segregação social