Título: O Líder da modernidade
Autor: Elaine Bittencourt
Fonte: Gazeta Mercantil, 12/11/2004, Fim de Semana, p. 1

A princípio como prefeito, depois como governador e por fim como presidente, Juscelino Kubitschek foi, entre tantos políticos, aquele que melhor assumiu o papel de líder de um grande projeto de modernidade. A febre desenvolvimentista que mobilizou o País, entretanto, geralmente é entendida de forma limitada. Poucos se recordam que as ambições de Kubitschek estavam muito além da política e da economia. O estadista empenhado no flerte com o capital estrangeiro que patrocinaria o crescimento do País, trabalhava por um Brasil moderno também no campo das artes. Esse lado, um tanto obscurecido de sua personalidade, é um dos focos da exposição "O Olhar Modernista de JK", com curadoria de Denise Mattar. Realizada pela Fundação Armando Álvares Penteado, a mostra está sendo exibida no Palácio do Itamaraty, em Brasília e seguirá depois para Belo Horizonte e São Paulo.

A iniciativa reproduz quase que completamente um dos mais marcantes feitos do político no campo das artes: a realização, em Belo Horizonte, da primeira mostra de arte moderna da cidade, há exatos 60 anos. Com a curadoria de um dos mais destacados artistas da época, Alberto da Veiga Guignard, o evento entrou para a história, atraindo tanta ou mais atenção que a Semana de Arte Moderna.

Em 1944, Juscelino Kubitschek era prefeito da conservadora Belo Horizonte. Político jovem e cheio de novas idéias, já causara rebuliço na cidade com a construção da Pampulha, conjunto arquitetônico projeto pelo ainda desconhecido Oscar Niemeyer, indicado a ele pelo diretor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rodrigo Melo Franco de Andrade. A Pampulha era um completo escândalo: não bastasse a inovação das linhas curvas e poéticas de Niemeyer, havia ainda o desconforto diante das obras de arte que a compunham. O painel de Cândido Portinari para a igreja do complexo, por exemplo, revoltou o clero local. Era só o começo da revolução cultural de Kubitschek.

Pampulha pronta, era na hora de mostrar ao resto do Brasil que surgia em Belo Horizonte um novo reduto da modernidade. Para tanto, sem nenhuma modéstia, JK planejou um evento de apelo nacional. Alberto da Veiga Guignard e J. Guimarães Menegale foram convocados para montar a "I Exposição de Arte Moderna". Juntos, reuniram a nata do modernismo brasileiro, da primeira e da segunda geração, além de incluir artistas que começava a despontar, como os jovens Milton Dacosta e Carlos Scliar. A curadora Denise Mattar explica que a mostra provavelmente só foi bem-sucedida por esta escolha certeira. Guignard, mais que talentoso, era querido por todos os artistas e não foi difícil a ele conseguir a participação em massa dos nomes mais prestigiados de seu tempo, tanto do Rio como de São Paulo, um fato pouco comum à época. Ao todo, eram 46 selecionados, nomes de peso como Alfredo Volpi, Anita Malfatti, Roberto Burle Marx, Emiliano Di Cavalcanti, Mário Zanini, Manuel Martins, Paulo Rossi Osir, José Pancetti e Lasar Segall.

Sem reproduzir a montagem da época - o design dessa vez é de Guilherme Isnard - Denise divide a mostra em quatro módulos. Somente o primeiro deles é dedicado à remontagem, um trabalho praticamente igual ao realizado pelo primeiro curador. "Tentei fazer uma genealogia da exposição. Eu refiz o caminho percorrido por Guignard", explica ela. O projeto contou com várias providenciais surpresas, como a descoberta na casa de Monique Bouffis, filha de uma das artistas incluídas na mostra, Martha Loutsch, o catálogo da exposição de 1944. Com o livro em mãos, Denise pôde tentar localizar as telas, gravuras e desenhos escolhidos por Guignard. A tarefa foi concluída com êxito quase total. A redução do número de obras é considerável. Originalmente, foram expostos 134 trabalhos, enquanto que a mostra atual apresenta 80. Mesmo assim, deste total, a curadora conseguiu 40 telas que estiveram na exposição de 1944. O que não pode ser recuperado foi substituído, de maneira geral, por obras muito similares às escolhidas por Guignard.

Dentre as obras que espantaram os mineiros, estão agora em Brasília "Terra", de Tarsila do Amaral, exibida ao público pela última vez exatamente em 1944; "Operários de Fábrica: Oleiros", de Hilda Campofiorito; "Retrato de Juscelino Kubitschek", de Guignard; uma pequena água-forte de Iberê Camargo e quatro gravuras de Oswaldo Goeldi, duas da série "Humilhados e Ofendidos" e duas da série "Carlitos", entre muitas outros trabalhos referenciais do modernismo brasileiro.

O evento planejado por JK era, mais que uma exposição, um ciclo cultural que envolvia arte, música e palestras. Duas caravanas, de São Paulo e do Rio de Janeiro, foram deslocadas para a cidade. Estiveram em Belo Horizonte, muitos pela primeira vez, importantes artistas, escritores, jornalistas e intelectuais. Oswald de Andrade, Luís Martins, José Lins do Rêgo, Sergio Milliet, Clóvis Graciano, foram alguns dos que, por dias a fio, atuaram como cronistas daquele evento, contando ao Brasil, nos mais diversos veículos de imprensa, suas impressões diante das surpresas preparadas por Kubitschek.

A todos, no discurso de inauguração da mostra, dizia JK: "O acontecimento que estamos presenciando merece relevo singular na vida artística de Minas. Pela primeira vez, à sombra das velhas tradições mineiras, se organiza um movimento cultural que estabelece raízes na substância nova e revolucionária dos espíritos modernos". O depoimento exaltado de Luis Martins resume a sensação de incredulidade geral. Ele, que dez anos antes visitara uma cidade mais pacata, não tarda a mostrar seu entusiasmo: "Vinte e sete horas de bandeirismo ferroviário foram o bastante para nos trazer à grande cidade cultural onde o espírito e a iniciativa e a inquietação intelectual de uma geração de jovens administradores realizam a mais empolgante experiência já tentada no País. É curioso e paradoxal o caprichoso destino que nos traz da `capital artística do Brasil¿ para vir aprender arte moderna em Belo Horizonte".

Os ânimos exaltados contribuíram ainda mais para que o evento entrasse para os livros de história. A polêmica rondava a cidade e, na exposição, nada causou mais espanto que a tela "Galo", de Portinari, pela estranha posição da cabeça do animal, obra que também está presente na mostra atual. As reações exageradas ultrapassaram as fronteiras mineiras e ganharam a imprensa do País. "Existem atualmente em Belo Horizonte dois partidos políticos, duas correntes adversárias, dois grupos inconciliáveis e uma polêmica: os que são contra e os que são a favor do "Galo" de Portinari", escreve o respeitado critico Luis Martins, em junho de 1944, no Diário de São Paulo.