Título: O redesenho do Mercosul
Autor: Dante Sica
Fonte: Gazeta Mercantil, 16/11/2004, Opinião, p. A-3
Apesar do fato de que em 2003 o Mercosul foi sacudido por um terremoto de mudanças por parte das principais autoridades de seus maiores membros, na tentativa de dar-lhe a vitalidade tão necessária, os fatos que se seguiram, principalmente a escalada de conflitos comerciais e a postergação dos avanços para a livre circulação dos produtos, demonstraram que o lapso transcorrido não foi utilizado para aprofundar a integração da maneira desejada.
A agenda do Mercosul tem itens pendentes há vários anos, com propostas de avanços conhecidas por todos os seus principais participantes, mas cuja concretização em certas ocasiões parece impossível, em vez de apenas improvável. Temas como a livre circulação de bens, a integração de processos produtivos incrementados em mais de um dos países-membros e a eliminação da cobrança em dobro da tarifa externa comum (TEC) são alguns dos tópicos clássicos em questão, aos quais outros de caráter estrutural deverão ser acrescentados, como o tratamento dado às assimetrias e às políticas de apoio público à atividade produtiva ou as divergências (e dificuldades) na internacionalização de normas entre os países-membros.
O Tratado de Outro Preto, firmado no final de 1994, marcou presença na estrutura institucional do Mercosul e instalou temas como as pautas para a tarifa externa comum (TEC) para produtos sensíveis, a incorporação às regras gerais dos setores automotivo e açucareiro e uma reforma institucional para criação de novos organismos. Entretanto, além das inovações positivas, a aplicação de muitos dos conceitos desse tratado não recebeu a continuidade desejada.
Apesar de nos últimos anos terem surgido tentativas diferentes para relançar o Mercosul, os repetidos fracassos são uma evidência de que apenas com a vontade política isso não se realizará.
Atualmente, as diferentes circunstâncias produziram a necessidade de um novo debate, denominado informalmente de Ouro Preto II. Essa nova reunião de cúpula deverá ajudar a recriação e o espírito do Mercosul e a definição de seu futuro imediato, assim como servirá de ocasião para a realização de um balanço que permita identificar quais foram os avanços conseguidos, e em processo de integração, e quais são os obstáculos que continuam a vigorar nos âmbitos institucional e comercial.
Nas discussões do Ouro Preto II as questões que devem prevalecer podem agrupar-se em três grandes blocos: institucional, estrutural e comercial. No institucional deverá ser pleiteado como objetivo básico o avanço na denominada Agenda 2006; também devem ser pleiteados os mecanismos de elaboração e tomada de decisão, ponto no qual convém analisar a possibilidade de flexibilizar o sistema de votação, quem sabe implementando um mecanismo diferenciado (por exemplo, por maioria de votos, ou voto qualificado, segundo certos parâmetros.)
Quanto ao item estrutural, as linhas de trabalho a abordar passam fundamentalmente pelo fomento das políticas comuns e pelo avanço na complexa questão da convergência estrutural.
Nesse ponto é vital a estruturação de políticas que procurem tratar das assimetrias, principalmente nos aspectos de apoio público em assuntos impositivos e financeiros; além disso, deve-se trabalhar sobre mecanismos de igualdade frente às bruscas mudanças macroeconômicas e aprofundar a integração produtiva. Um terceiro ponto a levar em consideração é a importância dos valores culturais na integração, tema que até o momento tem sido sufocado pela primazia outorgada às questões institucionais e comerciais. Nesse aspecto, e como complemento necessário para uma integração ampla, que abarque as idéias e sentimentos dos cidadãos do Mercosul, deve-se organizar uma política de comunicação e o incentivo dos mecanismos de participação.
Ouro Preto II abre as portas para uma reorganização do Mercosul que deverá formar o arcabouço de um bloco mais compacto e homogêneo e que, sem dúvida, o fortalecerá nas diferentes frentes de negociações internacionais que prosseguem. Até o momento, as diferenças internas não parecem ser determinantes nesse aspecto, mas está claro que isso também mudará.
O caso da negociação do Mercosul com a União Européia (UE) é um reflexo disso - as discrepâncias entre os membros do bloco constituíram um dos pontos que conduziram à postergação do acordo para o próximo ano.
Não há dúvida de que, no momento, o Mercosul debate fortemente sobre qual será seu perfil no futuro e sobre suas razões de existir.
Seja lá qual for a estrutura final que se dê ao bloco regional, sua continuidade exigirá de cada um dos países-membros um enorme esforço, devendo predominar a idéia de um bloco regional sólido e coeso, acima dos interesses particulares de seus membros. Ouro Preto II deve ser tratado como grande oportunidade a ser aproveitada ao máximo.
kicker: Os repetidos fracassos do relançamento do bloco mostram que só vontade política não basta