Título: Equívocos na análise econômica
Autor: João Marcus Marinho Nunes
Fonte: Gazeta Mercantil, 27/08/2004, Opinião, p. A-3

Equívocos de natureza conceitual são freqüentemente cometidos por analistas e imprensa especializada. Para participantes de mercado, a questão é que tais erros muitas vezes levam à tomada de decisões também erradas e potencialmente custosas. Um desses erros, que se repete a toda divulgação dos dados do Produto Interno Bruto (PIB) americano, é a velha cantilena de que o crescimento observado das importações contribui para reduzir o crescimento econômico. Dias atrás, quando foi anunciado mais um déficit recorde, a imprensa especializada e analistas foram rápidos em afirmar que isso seria um freio ao crescimento. Pouco antes, quando o dado de dispêndio do consumidor de junho foi revisado para cima, analistas concluíram que a segunda prévia do PIB do segundo trimestre seria revisada para cima. Por ocasião da divulgação do déficit comercial, concluíram que este dado contrabalançaria aquele, mantendo o crescimento do PIB inalterado. A implicação é a de que, se não fossem as importações, o PIB teria crescido muito mais. O interessante é observar que, se alguém pressionar o mesmo analista para explicar por que o crescimento das importações foi elevado, vai certamente ouvir algo como: "O responsável foi o crescimento forte da economia". Uma resposta claramente contraditória, mas poucos atentam para esse fato. A fonte do erro é facilmente identificada: as importações entram com sinal negativo na identidade que define o PIB. Como este mede o valor total dos bens e serviços finais produzidos no país durante um trimestre ou ano, itens importados têm de ser deduzidos para fins de cálculo do PIB. Em 2003, por exemplo, o PIB americano atingiu US$ 11,3 trilhões e as importações US$ 1,8 trilhões. Não se pode concluir, no entanto, que o PIB teria totalizado US$ 13,1 trilhões se os gastos com importações tivessem sido direcionados para bens e serviços produzidos domesticamente. Do mesmo modo, em 2003 o PIB nominal cresceu 4,9%, enquanto as importações aumentaram 7,3%. Não é verdade, como freqüentemente se conclui, que o PIB teria crescido mais se as pessoas tivessem gasto sua renda em bens domésticos em vez de importar. O resultado, ou seja, o fato de que as importações não deprimem o PIB, se dá por causa da maneira como as importações são financiadas. Qualquer país financia suas importações de duas maneiras: ou exportando parte da produção corrente, ou com a venda de títulos financeiros, que representam obrigações de entrega de produção futura de bens e serviços. Desde 1982, no entanto, as importações americanas vêm crescendo acima das exportações. Em 2003 o déficit na balança comercial atingiu US$ 500 bilhões. Quando isso acontece, o déficit tem de ser financiado ou pela redução de ativos externos ou pelo aumento do passivo externo. Isso se dá em geral pela troca de vários tipos de títulos e contas bancárias. Por exemplo, um estrangeiro que detenha títulos ou conta bancária denominados em dólares pode eventualmente utilizar esses recursos, adicionados dos juros ou dividendos recebidos, para adquirir bens e serviços produzidos nos Estados Unidos. Dessa maneira, esses instrumentos financeiros representam haveres sobre a produção futura do referido país. De outro lado, essa troca de instrumentos financeiros dá lugar a um ingresso de um capital externo que contrabalança, exatamente, o déficit comercial. Esses ingressos de capitais externos não ficam ociosos. As empresas ou governos que emitem os títulos ou os bancos que ofertam os depósitos utilizam os recursos obtidos para financiar os investimentos domésticos, as despesas públicas ou o consumo privado. Todos esses usos aparecem como dispêndios em algum lugar das contas nacionais. O importante é saber que, em todos os casos, o processo de pagar as importações contribui para a produção doméstica. Como mencionamos, em 2003 os Estados Unidos importaram US$ 1,8 trilhões. As exportações de bens e serviços pagaram US$ 1,4 trilhão desse total, enquanto os US$ 500 bilhões restantes foram pagos pela "exportação" de títulos financeiros, com o ingresso de capital correspondente, dando lugar a gastos da ordem de US$ 500 bilhões que apareceram em outras contas do PIB. Se as importações tivessem sido menores em 2003, o PIB certamente teria outra configuração. No entanto, o valor alcançado do PIB nominal, de US$ 11,3 trilhões, e o seu crescimento, de 4,9%, não teriam sido diferentes. Indo além das considerações puramente contábeis, do ponto de vista da dinâmica econômica os estudos empíricos indicam que existe uma causalidade dupla, ou seja, a elevação do crescimento econômico induz a uma importação maior e uma maior importação (ou, de modo mais abrangente, um comércio externo maior) favorece o crescimento econômico. Muitas vezes erros de conceito levamà tomada de decisões prejudiciais