Título: O pensamento sempre presente.
Autor: Klaus Kleber
Fonte: Gazeta Mercantil, 22/11/2004, Primeira Página, p. A1
Morre o autor da mais respeitável obra sobre a economia brasileira. A-1
Eles, Prebisch e Furtado se notabilizaram pelo estudo sistemático dos problemas do desenvolvimento, sintetizados em "Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico", escrito pelo economista brasileiro em 1967.
Reconhecimento e honrarias internacionais não faltaram, contudo, a Furtado, um humanista, muitas vezes convidado a dar palestras ou cursos em universidades e centros de estudos pelo mundo afora. Proscrito político no Brasil depois do golpe de 1964, teve um dos mais justos reconhecimentos no País ao ser eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1997.
Poderia, como mostram os "Contos da Vida Expedicionária", ter feito uma carreira literária em sentido estrito. Os exercícios literários da juventude o ajudaram a escrever com estilo, verve e com agudo sentido de observação. De volta dos campos de batalha da Itália, a realidade brasileira encaminhou-o em outra direção. Estudar economia, então uma ciência incipiente no Brasil, pareceu-lhe um estudo da esperança, levando-o primeiro à Sorbonne, à Universidade de Cambridge e depois à Cepal. Uma tese apresentada à Sorbonne foi o germe de "Formação da Economia Brasileira", publicado em janeiro de 1959.
Mesmo os economistas da escola americana mais ortodoxa, cujo ícone atual é Roberto de Oliveira Campos, não deixam de reconhecer que essa obra, na trilha de Caio Prado Jr., é indispensável para quem queira compreender a história econômica do Brasil e os problemas do desenvolvimento econômico. Ainda longe de ser o ídolo dos "chicagoanos" de hoje, Roberto Campos foi quem convidou Celso Furtado a integrar o novo banco de desenvolvimento que estava sendo criado no Brasil no governo de Juscelino Kubitschek e que viria ser o atual BNDES.
"Formação Econômica do Brasil" é obra didática, com um fundo nacionalista indesmentível. O Brasil foi sempre colônia e os colonizadores e seus descendentes, com base no trabalho escravo, em escala crescente à medida que as necessidades da lavoura, da mineração de metais ou do extrativismo vegetal o exigiam, nunca lograram ter o controle sobre a comercialização externa do que produziam. O ciclo do café foi exceção ou a grande abertura. Os brasileiros, que, como nacionalidade, surgiram no século XIX, embora o sentimento nacional seja visível desde o século XVII, conseguiram, afinal, conduzir ou induzir o mercado internacional em certa direção, deslocando ou co-optando os ingleses. Daí a capitalização, sem a qual a industrialização seria inviável, em que pese a grande contribuição trazida pela imigração estrangeira.
A burguesia nacional fez a sua aparição por essa época, mas ignorando ou procurando disfarçar seu papel como força renovadora. Não fez e não quis fazer a reforma agrária, aliando-se aos setores mais retrógrados da agropecuária. Celso Furtado, em vários textos, sempre deu ênfase à reforma agrária como indispensável para um desenvolvimento capitalista com base sobretudo no fortalecimento do mercado interno.
Em "Um projeto para o Brasil" (1968), escreveu: "O sistema de meação ou terça que, em outras partes do mundo, foi o ponto de partida para a formação de uma classe de camponeses, isto é, de agricultores independentes organizados em unidades familiares, ainda que trabalhando em terra alheia, entre nós se assimilou a uma forma de trabalho assalariado. O meeiro, financiado pelo proprietário e vendendo a sua produção "na folha", é tão dependente do proprietário quanto o assalariado, cabendo-lhe ademais os riscos que envolvem toda a produção agrícola, particularmente em regiões de clima irregular, como é o caso do nosso Nordeste." Alguns avanços foram feitos nessa área, mas há de se reconhecer que ainda são insuficientes. De outra forma não existiria o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que Celso Furtado considerava um dos fenômenos mais importantes do Brasil pós-democratização.
As vicissitudes políticas de Celso |Furtado como homem de ação são conhecidas e talvez ganhem mais projeção no noticiário. Uma obra de pensamento de um autor tão clarividente ficará, mas a sua passagem pelo governo e pelos governos não pode deixar de ter o necessário registro.
Escolhido por Kubitschek para fundar e dirigir a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), a princípio uma coordenadoria (Codeno), Furtado teve a oportunidade sonhada de tentar mudar a sua região de origem. Não mudou. No máximo, lançou um projeto, quase destroçado, anos depois, por irregularidades de sucessivos governos.
Convocado pelo presidente João Goulart em 1962, ainda no regime parlamentarista, estruturou, como ministro extraordinário do Planejamento, o Plano Trienal, prevendo crescimento sustentável, com um controle "gradualista" da inflação. Foi mais uma fantasia desfeita. O próprio presidente da República, reforçado pelo plebiscito do início de 1963, que restaurou o presidencialismo, quando se referia a certos pontos do Plano Trienal, dizia que "nisso não é possível seguir o plano do Celso."
Antes de deixar o ministério, Celso Furtado teve a satisfação de reencontrar Prebisch, quando em Mar del Plata, na Argentina, este se despedia da Cepal, depois de 14 anos na secretaria executiva do órgão. Em saudação ao pensador argentino, Celso Furtado disse então palavras que se aplicam a ele próprio: "Quando afirmei que encerramos um ciclo na vida da Cepal indiquei que esse fato não se deve propriamente ao afastamento do dr. Raúl Prebisch. Isso porque a influência desse grande mestre da América Latina, que somente agora se exerce em sua plenitude, continuará presente como força orientadora de todos nós. Para os homens que se projetam pelo pensamento criador e têm a faculdade de influir sobre os acontecimentos pela força de suas idéias, não existem despedidas porque eles sempre estarão presentes".