Título: A liderança de governo na AL
Autor: Carlos José Guimarães Cova
Fonte: Gazeta Mercantil, 23/11/2004, Opinião, p. A3
É oportuno trazer para o contexto atual, quando estão exacerbadas as paixões político-partidárias, uma análise realizada pelo cientista político Carlos Matus acerca das características das lideranças políticas na América Latina. É curioso como somos capazes de identificar traços marcantes entre nossos candidatos e o líder político genérico caracterizado por Matus.
A primeira observação de Matus refere-se à forma pela qual o líder típico monta sua equipe de governo. De acordo com as evidências coligidas, o modo como o governante reúne (no sentido de que não constitui) sua equipe de governo e organiza seu ambiente de trabalho obedece a uma lógica monótona. Em geral, o líder pretende formar uma orquestra com individualidades treinadas para trabalhar com partituras diferentes, além de tentar governar com uma agenda política primária, o que desperdiça tempo e distorce o seu foco de atenção. Porém, a liderança política nem sempre é exercida por líderes. Muitas vezes, ela é exercida por caciques que ascendem até onde lhes permite sua incompetência. O sistema político perde um cacique e engendra um líder medíocre. O cacique é um arauto de necessidades, que faz sua trajetória capitalizando as demandas e sonhos da populacha; o político é um dirigente que conhece o caminho; o estadista é o criador de caminhos.
A falta de capacidade de governar e de conhecimento das ciências e técnicas de governo se manifestam de modos distintos, conforme os atributos que predominam no ator político em questão: o cacique é propenso à barbárie política; o técnico, à barbárie tecnocrática; e o intelectual não-especializado inclina-se à generalização ilustrada.
A barbárie política é uma conseqüência da postura dos caciques políticos, que se acreditam movidos por uma espécie de predestinação. São revolucionários da linguagem, das formas e dos sons, de tal forma que pareçam verdadeiros atores de teatro.
Embora vazios e sem projetos consistentes, sabem se valer do esgotamento do sistema político vigente para alçarem-se ao poder como paladinos de uma justiça a ser resgatada. Tendem à soberba, e, em razão da carga de trabalho a que se submetem para atingir seus objetivos, de um modo geral deixam de ler e de estudar, desenvolvendo práticas políticas com um capital intelectual desatualizado e, salvo exceções, movendo-se num círculo de lugares-comuns.
A barbárie do técnico especialista decorre de seu conhecimento departamentalizado e de sua falta de cultura geral e de formação filosófica. A gravidade dessa situação consiste na tendência que possui esse especialista de agir em face das questões que desconhece, não com a humildade do ignorante, mas sim com a arrogância intelectual de quem é um sábio na sua especialidade.
Por fim, o drama causado pelo intelectual decorre da sua formação enciclopédica, que faz com que saiba de tudo um pouco, mas praticamente desconheça todos os aspectos de ação no plano operacional prático. Como agravante, ao atingir um posto governamental de expressão, vale-se apenas do seu capital intelectual próprio, sem renová-lo, tendendo a ser apenas um seguidor de opiniões consagradas pela crítica.
A blindagem emocional é outra característica desses líderes. Eles normalmente se cercam de uma entourage que lhe proporciona uma proteção cortesã. Esse círculo íntimo exerce um forte poder de bastidores, na medida em que funciona como um filtro de acesso ao líder. O que seria um mero "controle de portas" constitui-se, na verdade, num "controle de mente" do líder.
Outra faceta desses líderes consiste na tendenciosidade dos conselhos recebidos de seus assessores. Na falta de um sistema de assessoria formal, o dirigente atribui valor aos conselhos que lhe chegam, conforme o valor que ele dá ao canal de comunicação.
Como o líder não dispõe de meios para ponderar os reais custos e benefícios das propostas que lhe são submetidas, elas acabam sendo avaliadas pela credibilidade do indivíduo que as patrocinam.
Tal situação é agudizada pelo fato de que pompas e rituais acabam por envolver o dirigente, criando atmosfera de bem-estar e adulação que inflam o seu ego e distorcem ainda mais sua capacidade de julgamento. Esse efeito é mais perceptível nas lideranças cuja origem está nos estratos mais baixos da sociedade porque funciona como resgate tardio de seus recalques e frustrações.
A boa gestão governamental resulta da perícia com que o governante conduz o processo. Essa perícia de governo tem por base a experiência ponderada pelo capital intelectual disponível. Se a experiência for próxima de zero, a perícia também será quase nula, por maior que seja o capital intelectual. Se este último for nulo, a perícia também o será, por mais longa que seja a experiência. Nos governantes da América Latina há grande necessidade de capacitação e aumento da perícia da direção política.
kicker: O cacique é propenso à barbárie política; o técnico, à barbárie tecnocrática