Título: O retrato colorido de um trovador
Autor: Alexandre Pavan
Fonte: Gazeta Mercantil, 27/08/2004, Fim de Semana, p. 03

A modinha e o lundu são as principais raízes da Música Popular Brasileira. Até o mês passado, ainda pairavam algumas dúvidas a respeito de em que terra as sementes dessas duas manifestações musicais - em especial, a da modinha - haviam germinado originalmente. Se em solo brasileiro ou português.

Em seu novo livro, "Domingos Caldas Barbosa - O poeta da Viola, da Modinha e do Lundu" (Editora 34), o jornalista e historiador, José Ramos Tinhorão, passa um arado na discussão e revela com clareza a modinha como uma música afro-brasileira.

Em alguns de seus 24 livros anteriores - todos fundamentais para se compreender a história de nossa música -, Tinhorão já traçara essa tese, que, agora, ele sustenta novamente a partir de uma argumentação muito bem documentada, com base numa pesquisa de mais de 20 anos em acervos e arquivos do Brasil e de Portugal.

A figura chave da história é o cantador Domingos Caldas Barbosa (1740-1800), um mulato carioca, filho de um português, tesoureiro do rei em Angola, com uma negra nativa, sua escrava. Quando o casal saiu da África e aportou no Brasil, em 1740, a mulher foi alforriada, para evitar que o menino nascesse escravo.

Apesar da provável infância pobre, Caldas Barbosa conseguiu ingressar no Colégio dos Jesuítas, no qual se diplomaria mestre em Artes. "Essa formação padronizada pelo ensino jesuítico ia ser compensada por um segundo perfil cultural: a do jovem filho da colônia submetido a toda uma vivência local marcada pelo contato direto com a gente da camada mais baixa, de variada combinação étnica, mas unânime disposição para a vagabundagem e a chalaça", escreve Tinhorão. Foi nessa mistura de educação formal e escola da rua que Caldas Barbosa desenvolveu sua habilidade de improvisador de versos.

Em 1763, ele parte para Portugal a fim de estudar direito na Universidade de Coimbra. Se havia deixado o Brasil com pouco dinheiro no bolso, a dificuldade financeira se agrava ainda mais no ano seguinte, com a morte de seu pai. Tanto que Caldas Barbosa mal chega a se matricular na faculdade. Passa a viver de forma errante, exibindo seu talento poético-musical em festas e reuniões de famílias nobres, atividade que lhe rendia alguns trocados.

A Lisboa da época estava sendo modernizada e se reerguia do terrível terremoto, que a havia destruído dez anos antes. Tanto as classes urbanas em formação, quanto a velha aristocracia procuravam novas formas de entretenimento, e esse cenário parecia ideal para Caldas Barbosa exibir seus dotes artísticos.

Mas, para um pobretão como ele, integrar a alta sociedade não era tão fácil quanto improvisar versos ou tanger a viola. A situação do poeta só melhora quando conquista, com sua cantoria, os ouvidos dos irmãos José e Luís Vasconcelos e Souza, jovens de uma abastada família que passam a protegê-lo.

O brasileiro passa a gravitar com mais facilidade nos salões chiques e chega até mesmo a cantar para o rei dom José I. Protegido por nobres e prestigiado, consegue um título religioso e, em seguida, conquista uma vaga na Arcádia de Roma, onde adotaria o nome de Lereno Selinuntino. Caldas Barbosa acaba ganhando um lugar entre a nova geração de poetas, na qual se destacavam nomes como Bocage (1765-1805), Agostinho de Macedo (1761-1831) e Curvo de Semedo (1773-1838). Posteriormente, torna-se membro-fundador da Nova Arcádia.

Espírito trovador

Os versos do brasileiro, no entanto, fugiam ao padrão. O poeta não se dirigia à musa árcade, mas falava diretamente às mulheres comuns, com uma intimidade que faziam as européias se abanarem com seus leques, de tão derretidas que ficavam. Ele tinha o espírito dos trovadores populares, utilizava onomatopéias, africanismos e contava o cotidiano. Se as mulheres gostavam, os conservadores não topavam o excesso de liberdades que Caldas Barbosa imprimia e, queriam mesmo, é que ele enfiasse a viola no saco e saísse de fininho. Um dos generais de plantão da linguagem, depois de ouvi-lo cantar, escreveu: "Mas não direi tudo quanto vi; direi somente que cantavam mancebos e donzelas cantigas de amor tão descompostas, que corei de pejo como se me achasse de repente em bordéis, ou com mulheres de má fazenda."

O próprio Bocage - cuja obra, vamos e venhamos, não é nenhum manual de bom comportamento para moças de família - também disparava contra a viola de Lereno. Em um soneto, que acabou pondo fim à participação do brasileiro na Nova Arcádia, Bocage o chamava racistamente de "orangotango com gestos e visagens de mandinga". Além de expor o preconceito de alguns dos seus contemporâneos, de acordo com Tinhorão, a presença de Caldas Barbosa revelava um fundamento histórico-social escondido pelas rivalidades literárias. "A realidade mostrava existir, agora, em seu meio, duas linguagens socialmente em oposição: a dos intelectuais tradicionais congregados à sombra oficial das academias, e a dos novos intelectuais sensíveis à democrática admiração do heterogêneo público de leitores de cordéis, freqüentador do teatro popular de entremeses e do debochado ambiente dos botequins", escreve o historiador.

E seria no teatro, nos cafés e botequins que Caldas Barbosa, após sua saída da Nova Arcádia, continuaria propagando seus brasileirismos, modinhas e lundus - lembrando que, como explica Tinhorão, a palavra lundu vem de "calundu", que significa estar tomado por um sentimento melancólico. Os versos do mulato carioca, mais tarde inspirariam, por seu coloquialismo, poetas como Fernando Pessoa. Já suas melodias tinham criado um precedente, afinal não podiam ser classificadas como folclóricas ou eruditas - aquilo era música popular urbana, e daria origem à seresta, choro, maxixe e ao samba.

A única imagem que se conhecia de Domingos Caldas Barbosa era uma litografia desbotada que ilustra a primeira edição da "Viola de Lereno" (1798), coletânea de sua obra. Tinhorão pintou um retrato colorido do fundador da Música Popular Brasileira.