Título: Fidelidade aos ideais de Celso Furtado para o Brasil
Autor: Léo de Almeida Neves
Fonte: Gazeta Mercantil, 02/12/2004, Opinião, p. A-3

Irreparável a perda de Celso Furtado (20/11/04), nosso maior economista, respeitado internacionalmente. Era um pensador humanista e deixou marcas como formulador da Sudene, ministro do Planejamento do governo João Goulart e da Cultura com Sarney. Escreveu 30 obras de economia traduzidas e publicadas em 15 idiomas, destacando-se "Formação Econômica do Brasil" (1959) e "Desenvolvimento e Subdesenvolvimento" (1961). Viveu e morreu fiel ao seu ideário nacional-desenvolvimentista e de redução das desigualdades regionais e sociais. Embora decepcionado com as atuais diretrizes macroeconômicas, apoiava a ação do BNDES, cujo orçamento de aplicação para 2005, de R$ 60,8 bilhões, tornou-o principal instrumento governamental de promoção do desenvolvimento econômico, estímulo às exportações e estreitamento de vínculos e integração com os países da América do Sul.

A fonte básica de recursos do BNDES é o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), remunerado a 6%, permitindo-lhe trabalhar com Taxa de Juro de Longo Prazo (TJLP) de 9,75% ao ano, que o ex-presidente Carlos Lessa propôs ao CMN diminuir a 8% com o intuito de animar os empresários a se lançarem na ampliação de suas indústrias e iniciativas de novos empreendimentos.

Outros dois mecanismos importantes na execução de políticas públicas são o crédito rural e os financiamentos habitacionais, aos quais destinam-se obrigatoriamente 25% dos depósitos à vista do sistema bancário e 65% dos depósitos na poupança.

É consensual o reconhecimento do relevante papel exercido pela Carteira de Crédito Agrícola e Industrial (Creai) do Banco do Brasil, criada por Getúlio Vargas em 1937, no incremento da produção rural e melhoria do padrão zootécnico dos rebanhos brasileiros.

Os empréstimos diferenciados de valor acrescido às lavouras tecnicamente conduzidas e à pecuária modernizada contribuíram eficazmente para o Brasil aproveitar sua inexcedível potencialidade no campo e assumir a liderança mundial na exportação de soja e derivados, carne bovina e frango e conservá-la no café, açúcar e suco de laranja, cabendo realçar o inestimável suporte dos técnicos e cientistas da Embrapa, fundada em 1973.

Tive o privilégio de participar desse esforço como diretor da Creai no governo João Goulart (1961-1964), período em que houve a introdução do cultivo de soja, regulamentou-se o financiamento de eletrificação rural e foram simplificadas as normas burocráticas de análise e concessão dos créditos com vistas à democratização de sua abrangência.

Na década de 60 iniciou-se o trabalho de racionalização da cultura cafeeira, com eliminação de cafeeiros improdutivos, substituídos por lavouras de subsistência. A implantação desse plano acelerou-se a partir de 1974, com a fantástica transposição de um bilhão de pés de café de zonas ecologicamente desfavoráveis, suscetíveis de geadas, para regiões mais adequadas, notadamente de Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia. Isso só foi possível graças à capilaridade das agências do Banco do Brasil por todo interior, facilitando o pagamento de bônus aos que erradicassem e ágil diferimento de contratos, com repasse de verbas oriundas da "quota de contribuição" recolhida sobre os embarques de cada saca de café.

A Caixa Econômica Federal, que dispõe do dinheiro do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), sempre esteve atuante no crédito imobiliário, hoje igualmente obrigatório às instituições financeiras que operam com caderneta de poupança visando à diminuição do déficit habitacional e à absorção de mão-de-obra não-especializada.

Há muito tempo não se praticam juros subsidiados nas linhas de crédito habitacionais e rurais, salvo o Pronaf, aos pequenos proprietários, e alguns programas sociais à população de baixa renda, sendo a diferença de juros coberta pelo tesouro estadual ou nacional. A propósito, a TJLP de 9,75% ou 8% do mesmo modo não é subsídio, porque está acima da taxa de inflação ou da remuneração do FAT.

Cogitar-se de flexibilizar, subtrair ou extinguir créditos direcionados à área agrícola, ao setor habitacional ou ao desenvolvimento econômico e social (BNDES), data venia, é no mínimo um despautério em país emergente como o Brasil, que precisa romper a barreira do subdesenvolvimento e suplantar os gravíssimos problemas de distribuição de renda, miséria, fome, desemprego e criminalidade.

Nos países ricos do G-7 (EUA, Canadá, Japão, Alemanha, Inglaterra, França e Itália) pode-se justificar tal medida. Mas aqui, na China, Rússia, Índia, África do Sul, Argentina e outros impõem-se procedimentos adaptáveis à conjuntura local. O novo presidente do BNDES, o economista Guido Mantega, não deixou margem de dúvidas ao declarar: "O BNDES tinha perdido seu rumo e vocação de banco de desenvolvimento e o presidente Lessa o recolocou nesse trilho. Ele continuará sendo não apenas um banco financeiro; tocará projetos prioritários do governo e apoiará a política industrial".

O presidente Lula parecia inspirado em Celso Furtado quando, quatro dias depois de sua morte, afirmou publicamente: "O patamar ideal para o dólar é de R$ 2,90 a R$ 3,10, que seria melhor para nossas exportações, uma das razões de nosso sucesso em 2004". Aliás, a melhor homenagem à memória de Celso Furtado é lutar pela concretização de seus ideais de reduzir as diferenças regionais, acabar com as injustiças sociais e emancipar economicamente o Brasil, colocando-o no rol dos países mais ricos do mundo. kicker: Embora decepcionado com as diretrizes macroeconômicas, apoiava a ação do BNDES