Título: Tolerância zero para crime digital
Autor: Denise M. Maldonado da Cunha
Fonte: Gazeta Mercantil, 03/12/2004, Editorial, p. A-3
Cerca de 76% dos paulistanos nunca adquiriram produtos pela internet. Uma pesquisa do Programa de Administração do Varejo (Provar) da USP, divulgada recentemente, mostrou que cerca de 76% dos paulistanos nunca adquiriram produtos pela internet. E, o que é ainda mais grave, nem pensam em fazê-lo tão cedo. Um dos motivos desses consumidores reticentes é tão óbvio que a pesquisa somente corroborou o que, mais ou menos, todos sentimos: medo de fraudes. Ou seja, também no mundo virtual estamos à mercê do crime, organizado ou não. E ele impede o desenvolvimento ainda mais dinâmico das vendas na internet, embora elas economizem tempo e até despesas, entregando na recepção do prédio ou na porta de casa o produto adquirido. Quem de nós nunca teve receio de acessar sua conta bancária no site da instituição financeira? Ou de fazer qualquer outra movimentação financeira dessa forma? Afinal, multiplicam-se as técnicas utilizadas pelos hackers para roubar senhas, copiar informações sigilosas, interceptar mensagens eletrônicas. O direito de ir e vir nas grandes e médias cidades brasileiros praticamente já deixou de existir. O simples ato de descansar no banco de uma praça, entre uma atividade e outra, já nos deixa alertas a qualquer movimentação suspeita. Os arrastões se multiplicam nas praias e as aglomerações de pessoas que começam a fazer suas compras de Natal também propiciam toda a sorte de furtos. É lamentável que a insegurança do dia-a-dia também invada a internet. Estamos, literalmente, sitiados pela violência, não somente aquela da agressão física explícita, mas a de não poder nos mover à vontade nem nos monitores de nossos microcomputadores. Mais do que lamentar, contudo, devemos nos mobilizar para cobrar uma política de "tolerância zero virtual". Não é admissível que bandidos precoces - muitas vezes um adolescente hiperdotado de inteligência e facilidade para utilizar softwares - e bandos organizados acabem com esse último reduto de tranqüilidade que nos sobrou, o lar ou o escritório. Para isso, teremos de discutir, em regime de urgência, uma legislação para esse mundo digital, adequada à velocidade com que são desenvolvidas novas tecnologias. E mais: essas leis deverão ser periodicamente revistas, pois a tecnologia da informação é muito mais mutável do que as relações comerciais e civis da vida ao vivo e em cores. Se isso não ocorrer imediatamente, correremos o risco de ter, nesse ambiente da internet e dos e-mails, o que ocorreu com algumas regiões do Brasil, como o Morro do Vidigal, no Rio de Janeiro: um estado paralelo, que tem suas próprias leis, a ponto de impedir que trabalhadores dignos subam para seus lares devido a um tiroteio entre facções rivais do tráfico. Hoje, além do serviço sujo dos hackers, dos programas espiões que vasculham nossos hábitos (spys), temos de procurar os e-mails relevantes para nossos negócios e nossa vida social, em meio a uma avalanche de lixo, os spams. Que são aqueles e-mails enviados indiscriminadamente para milhares de pessoas, tentando vender algum produto ou serviço sem nenhum critério de triagem. Isso quando não configuram golpes, mesmo que, de tão descarados, cheguem a ser ridículos. Tudo isso merece uma legislação civil, comercial e criminal própria, rígida, que puna exemplarmente aqueles que conspurcam uma das mais importantes inovações mundiais dos últimos anos. Os mais jovens, por exemplo, poderiam ser condenados a trabalhar com a educação, desenvolvendo programas que facilitem o aprendizado dos portadores de deficiências. Para os criminosos adultos, não deveria haver diferença em relação àqueles que cometem delitos "no mundo de cá". Se não é possível apagar os erros do passado, que permitiram a criação de "estados dentro do estado", vamos agir rapidamente para preservar ao menos nossas relações digitais. Afinal, os ganhos que a internet representa e ainda pode significar para educação, ciência, comércio e lazer estão ameaçados pela criminalidade. Talvez essa tolerância zero digital inspire, também, nossos legisladores e administradores públicos para que nos devolvam o direito de ir e vir, do lado de cá. Teremos, então, o melhor dos mundos (virtual e concreto).