Título: Investimento mantém-se baixo
Autor: Otto Filgueiras
Fonte: Gazeta Mercantil, 06/12/2004, Primeira Página, p. A-1

Júlio Gomes de Almeida, diretor do Iedi, diz também que o crescimento brasileiro é inferior à média mundial. O diretor do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), Júlio Sérgio Gomes de Almeida, diz que o crescimento de 5% da economia em 2004 "é belíssimo para quem praticamente não cresceu no ano passado, mas abaixo da média dos países em desenvolvimento, que devem crescer de 6,5% a 7%, é igual à taxa mundial e inferior à da Rússia, que vai crescer 7%, à dos países da ex-União Soviética, que vão crescer 8%, abaixo da Índia, que crescerá 6,5%, e da China, que deve crescer 9%".

Por isso, o diretor do Iedi diz que "aumentar nossa taxa de investimento é crucial para que tenhamos um crescimento sustentável e partir para pensar na qualidade do desenvolvimento, se vamos enveredar para os setores de mais alta tecnologia ou não, se vamos ter capacidade na base de nossas competividades naturais e se vamos desenvolver outras competitividades". A seguir trechos da entrevista.

Gazeta Mercantil - O crescimento do PIB no terceiro trimestre significa que o Brasil entrou num longo ciclo de crescimento, como dizem o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles?

Júlio Sérgio Gomes de Almeida - Assim como não há empresário que não diga que o juro está alto e exportador que não diga que o câmbio não está bom, não há ministro da Fazenda e presidente de Banco Central que não digam que agora vai e que temos um crescimento sustentável pela frente. É importante que as autoridades dêem o seu recado de que teremos um crescimento de mais longo fôlego, porque os empresários investem olhando não no que está acontecendo, mas no que vai acontecer. Mas há um misto de análise e de torcida nessa afirmação e espero que seja mais análise do que torcida. De qualquer maneira eles sabem, e nós sabemos também, que o nosso crescimento sustentável ainda está para ser construído e não se faz com taxa de investimento de apenas 19% do Produto Interno Bruto (PIB).

Gazeta Mercantil - Qual a taxa de investimento ideal?

Júlio de Almeida - Nos países asiáticos a taxa pode chegar a 40% do PIB, mas no caso brasileiro um investimento de 25% do PIB permite um crescimento de 7% ao ano. Toda essa gente que está comemorando o resultado do PIB deste último trimestre, e com razão, porque é um crescimento bom, devia também lamentar que nossa taxa de investimento seja apenas de 19% do PIB, e fazer um minuto de silêncio porque nosso crescimento de 5% em 2004 ainda assim é baixo e inferior à média dos países em desenvolvimento, que crescerão de 6,5% a 7%, e igual à taxa mundial. E o Brasil, para ficar menos distante, tem de estar melhor do que a média mundial, mas está bem abaixo da Rússia, com taxa de 7%, dos países da ex-União Soviética que vão crescer 8%, está abaixo da Índia, que crescerá 6,5%, e da China, que deve crescer 9%. Por isso, aumentar a nossa taxa de investimento é crucial para ter crescimento sustentável. E, a partir daí, pensar na qualidade do desenvolvimento, se vamos enveredar para os setores de mais alta tecnologia ou não, se vamos ter capacidade na base de nossas competividades naturais e se vamos desenvolver outras competitividades. Precisamos reencontrar uma forma de crescer mais e por um período maior de tempo. Para isso, precisamos de um crescimento mais qualitativo, com maior valor agregado e maior tecnologia, e uma política industrial, fundamental depois da grande inércia que prevaleceu no Brasil durante os últimos 20 anos.

Gazeta Mercantil - Que tipo de política industrial?

Júlio de Almeida - Uma política que repense o futuro, nos setores novos que podem ser desenvolvidos, nos setores tradicionais que podem ganhar competitividade caso adaptem tecnologia e se modernizem para acompanhar as tendências internacionais. Chegamos de uma história de política industrial de sucesso e que vigorou até o II PND (Plano nacional de Desenvolvimento), mas já passou seu tempo, porque era uma política para os anos 1950, que permitiu a instalação da nossa base industrial e acabou, deu o que tinha que dar. De meados dos anos 1970 até agora, ficamos sem orientação de política industrial. E a grande contribuição que o governo Lula está dando ao processo econômico brasileiro é ter definido alguns setores industriais estratégicos e prioritários: fármacos e medicamentos, semicondutores, softwares e bens de capital. Além de dar apoio a esses setores, o governo formulou alguns programas na área de tecnologia e de produção industrial que são relevantes para a indústria, a exemplo do programa de modernização industrial, o Modermaq. Mas não há prioridade para nossa indústria de base, de insumos básicos, e essa é a razão pela qual temos escassez de produção. Nossa indústria siderúrgica está utilizando praticamente 95% de sua capacidade; a de papel e celulose, de borracha e a têxtil também estão assim. E se tivermos um crescimento um pouco maior, em dois anos haverá escassez de produtos nas áreas químicas, petroquímicas e de refino.

Gazeta Mercantil - Há empenho do governo Lula?

Júlio de Almeida - Louvamos a iniciativa do presidente Lula, mas vejo muito pouco empenho do seu governo, com exceção do ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Luiz Fernando Furlan, que é desse ramo e quer fazer política industrial e tecnológica, porque sabe que é decisiva para um crescimento de melhor qualidade, que respeite o meio ambiente, tenha capacidade de gerar valores agregados à sociedade, gerar mais salário e mais lucro. E gerar mais impostos também, com os quais o governo é capaz de fazer programas de infra-estrutura e programas sociais.

Gazeta Mercantil - É possível levar adiante uma política industrial com esse modelo econômico monetarista?

Júlio de Almeida - A orientação do núcleo econômico do governo não é pró-política industrial e tecnológica. Eu diria até que é bastante contrária. Mas todo governo também é um misto desse conflito no seu interior. Portanto, é perfeitamente possível ter esses embates e ter também um equilíbrio maior do lado produtivo em relação ao lado do chamado mercado. O que falta não é a voz do mercado financeiro e sim a voz da produção, que estava apagada. Agora se ouve uma voz rouca da produção no Brasil, que ainda é dominado pela voz do lado do financeiro.

Gazeta Mercantil - O superávit primário elevado não deixa o Estado sem recursos para investir?

Júlio de Almeida - Atualmente, não temos iniciativas de porte que possam compatibilizar a situação de restrição orçamentária e a necessidade de o governo voltar a investir. Temos que estabelecer desde já que o investimento em infra-estrutura depende do setor privado, do setor público, e de uma parceria entre o público e o privado. As Parcerias Público-Privadas (PPP) são importantes, particularmente para investimentos em infra-estrutura. E, para compor esse tripé, a perna fraca é que o investimento privado está paralisado com a falta de regulação, mas também porque o investimento do governo está parado pela exigência de estabilização, pela necessidade de ter superávit primário, mas também pela falta de criatividade e porque a PPP não saiu, pois o Congresso Nacional ainda não aprovou o projeto. A PPP não é a salvação da lavoura, mas o complemento necessário. Com isso e com alguma percepção por parte do setor privado de que o governo está fazendo sua parte em infra-estrutura, e que vai melhorar a regulação, o investimento privado virá. Achamos errado aumentar o superávit primário de 4,25% para 4,5% do PIB, porque isso equivale a R$ 4 bilhões, recurso que poderia ser investido na infra-estrutura. E, na prática, o superávit primário está acima de 5% do PIB, porque o governo é mais realista que o rei.

Gazeta Mercantil - A política industrial precisa estar inserida num projeto nacional?

Júlio de Almeida - Falamos muito em política industrial porque nosso instituto cuida disso, mas do que nós precisamos, mais do que isso, é de um projeto nacional, de um conjunto de estratégias definidas para o País. E isso inclui uma relação internacional soberana e com autonomia relativa, porque nós vivemos num mundo interativo. Não temos que aceitar nenhum acordo internacional bilateral que nos retire a capacidade de fazer políticas pensando no Brasil de amanhã. E essa inserção internacional tem que se dar de uma maneira equilibrada entre a agricultura e a indústria, os dois setores básicos do comércio internacional. O dado revelador é que, nos últimos dois anos, o Brasil teve um crescimento acumulado de 55% nas suas vendas externas. E há seis meses esse crescimento é puxado pela indústria, com a exportação de produtos manufaturados, porque a indústria agregou valor e melhorou sua competitividade. Outro ponto relevante é ter soberania nacional em tecnologia, ter nichos de desenvolvimento tecnológico para perseguir durante dez, quinze ou vinte anos, e apostar em ser um líder relevante em algum campo desses no futuro.

Gazeta Mercantil - Quais nichos tecnológicos?

Júlio de Almeida - Temos que apostar em nanotecnologia (temas da tecnologia do futuro, a exemplo de novos materiais), tecnologias associadas às inovações, nas quais temos grande competitividade, como no agronegócio e na indústria de insumos básicos. Outro ponto é trazer o desenvolvimento tecnológico para dentro de um aparato empresarial e ter a dimensão de mercado. A nossa Lei de Inovação acabou de ser aprovada, permite que se tenha uma relação do governo com a iniciativa privada e nos moldes de outros países. Até há pouco tempo isso era palavrão, tanto que era proibido; e agora é capaz de ser criticado pelo mercado financeiro. A Lei de Inovação permite que o governo compre, banque ou participe do risco de uma inovação tecnológica aplicada a um produto, a um serviço ou a um processo de produção por uma empresa. É preciso pensar também no modelo de gestão desses recursos, porque as pesquisas tecnológicas e de inovação são caras, e os recursos são escassos. O governo federal mantém uma massa de recursos respeitável. Uma grande parte, aliás, está presa no Ministério da Fazenda, e o governo poderia desde já fazer um grande serviço à estratégia de inovação tecnológica liberando esse dinheiro, quase R$ l bilhão, que foi contingenciado por sucessivos programas de austeridade financeira.

Gazeta Mercantil - O Brasil não está muito subordinado aos Estados Unidos?

Júlio de Almeida - Na sua estratégia macroeconômica, no seu pensamento econômico e nas ideologias predominantes no Brasil temos uma influência americana muito forte, talvez até demais. Eu gostaria que tivéssemos uma influência menor do mercado financeiro - que é muito pró-americano - dentro do governo brasileiro, do Estado brasileiro e do que se discute no Brasil. Seria melhor ter uma ideologia dividida entre a produção e o chamado mercado. Isso faz falta ao Brasil, e é o que dá a diferença de fundo entre os modelos asiáticos de crescimento e o nosso. Nos países asiáticos os modelos estão orientados pela idéia de que a produção é o máximo, é o coração do sistema, enquanto no modelo da nossa economia o pressuposto é que o mercado financeiro é o máximo, é coração do sistema.

Gazeta Mercantil - A crise do déficit fiscal e em conta corrente dos Estados Unidos pode repercutir negativamente no Brasil?

Júlio de Almeida - Os Estados Unidos terão de alguma forma - terão é uma palavra muito difícil, porque para quem manda no mundo não existe nunca a palavra "terá, ou terá é relativo"... Mas caso os Estados Unidos tenham efetivamente de reduzir seu déficit externo, que é muito alto, haverá repercussão forte em todo o mundo, inclusive no Brasil. Mas, é também uma oportunidade, pois estamos no limiar de uma nova mudança na divisão internacional do trabalho, na divisão internacional das competências, na divisão internacional do eixo de investimento produtivo. E é um desafio positivo, porque a mudança da divisão internacional do trabalho pode alterar o direcionamento do investimento produtivo e podemos reentrar nesse processo, porque nos anos 1980 e 1990, nos anos da globalização, o Brasil não se inseriu. Há quinze anos estamos fazendo apostas erradas nesse processo, mas agora, com a eventual mudança da relação americana no comércio mundial, que é isso que está em jogo, há uma nova configuração e é possível que o Brasil entre nessa configuração como não entrou na globalização. E temos "garrafa para vender" no campo da tecnologia, e nosso governo está atento a isso. De 30 anos para cá estamos formando uma capacitação de nível superior e até de pós-graduação, relevantes para ingressar no mundo de tecnologia.

Gazeta Mercantil - É possível construir um projeto nacional sem um clamor nacional e popular a favor disso?

Júlio de Almeida - Acho que sim. Acho que o governo Lula pode dar um passo autônomo nessa direção. Estou falando do lado econômico, mas tem todo um lado social envolvido em opções como essas. A opção social é ter empregos de melhor qualidade e uma economia crescendo mais e inserida no mercado internacional com produtos de melhor qualidade.

Gazeta Mercantil - Esse projeto nacional implica ter uma burguesia brasileira?

Júlio de Almeida - Sem dúvida. Eu não conheço nenhum processo de desenvolvimento forte, e num país com dimensões iguais à que temos, sem ter um empresariado nacional muito forte. E temos isso. Na verdade, o Brasil tem todas as condições intactas, a despeito de tudo que foi feito, para ter um desenvolvimento nos padrões que outros países já fizeram. Temos empresas nacionais relevantes, bancos nacionais relevantes, um governo democrático, uma relação internacional diversificada, comércio e parceiros internacionais diversificados. Temos tudo e capacidade de fazer tecnologia independente de outros países. Para isso, o Iedi tem uma concepção de economia e da indústria como meio, e não como fim. Toda nossa visão é de que esse processo não tem sentido se a economia e a indústria não contribuírem para o desenvolvimento humano de um país em que as pessoas vivam melhor, tenham mais saúde e mais educação. E para isso é necessário desenvolver os setores financeiro, de serviços, agricultura, indústria e de organizações não governamentais (ongs), além do próprio governo. Mas a indústria tem um papel central nesse processo. Aliás, essa é outra coisa que precisamos mudar na orientação e na ideologia predominante em alguns setores da sociedade, e predominante no governo ainda hoje - a idéia de que a indústria não é importante. Existe um pensamento antiindustrial muito forte no Brasil, eu diria predominante no governo Lula (cujo presidente é um representante do lado produtivo da economia), de que a indústria não é necessária ao País. Isso é um equívoco, porque não há casos de forte desenvolvimento em que a indústria não tenha sido o coração desse processo, até mais do que a agricultura, em muitos casos. A agricultura foi o coração em um ou outro caso, mas a indústria é o coração do sistema; e só muito depois se tem uma etapa pós-industrialização, em que o setor de serviços altamente sofisticado, altamente disseminado pela sociedade e bem remunerado, sucede ao crescimento da indústria. Isso é uma etapa que não alcançamos. E no Brasil chegamos ao cúmulo de ter uma desindustrialização relativa muito precoce. Considerando que já temos um boom do agronegócio, temos de voltar a ter um boom industrial para completarmos nosso processo de desenvolvimento.