Título: Choque de realidade na política externa
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Fonte: Gazeta Mercantil, 09/12/2004, Opinião, p. A3
Desde 2000, a diplomacia e o empresariado brasileiro perseguem, com tenacidade, a execução do plano de integração física da América do Sul. O alvo mais relevante da estratégia é a aguardada saída para o Pacífico, que permitiria outra forma de multiplicação na presença dos produtos brasileiros no promissor mercado asiático. A III Reunião de Presidentes da América do Sul, que termina hoje na histórica Cuzco, no Peru, viabiliza essa pretensão. Nessa reunião, por exemplo, os presidentes Lula e Toledo reiteram o compromisso de tirar do papel a Rodovia Interoceânica, ligando Iñapari, na fronteira do Estado do Acre, aos portos peruanos de Ilo e Matarani no Pacífico. É resposta consistente, no âmbito interno, para a repetida crítica de um dos pilares da política externa que privilegia objetivos de integração com nossos vizinhos.
O ponto alto da reunião será a ratificação pelos 12 presidentes da "Agenda de Implementação Consensuada 2005-2010", que representa o filtro em apenas dez projetos - os considerados "chaves" - entre os mais de 300 que compunham a agenda do plano original da Iniciativa para a Integração Regional Sul-Americana (IRSA) aprovada na I Cúpula de Presidentes, de 2000, em Brasília. Porque a proposta de integração está construída, exatamente, por esse "choque de realidade", marcado apenas pelo compromisso com o possível - deixando o ideal para o futuro -, que o projeto assentado no acordo de livre comércio entre o Mercosul e o Bloco Andino irá evoluir, com segurança, para a criação de uma Comunidade Sul-Americana de Nações. Choque de realidade começa na precisa definição das fontes de financiamento de cada projeto "prioritário". Essa opção, pelos projetos tangíveis, fez com que a sensatez ocupasse o lugar da retórica nessa expectativa de integração.
O ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, afirmou que a Comunidade Sul-Americana de Nações está sendo criada sob os pilares comercial, político e de integração de infra-estrutura. A maior obra isolada da Agenda Consensuada da Comunidade será o gasoduto pelo nordeste da Argentina para transportar gás boliviano, obra orçada em US$ 1 bilhão. Porque o interesse da iniciativa privada no projeto já está firmado, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Corporação Andina de Fomento (CAF) já autorizaram o financiamento do projeto. Não é diferente com a Rodovia Interoceânica. Em agosto, o presidente Lula inaugurou ponte sobre o Rio Acre, essencial para a transposição rodoviária da fronteira. O custo final projetado da obra é de US$ 700 milhões. Desembolso do BNDES permitirá a primeira fase da obra: a pavimentação de 413 quilômetros, custo de US$ 202 milhões, entre Iñapari e Inambari, em território peruano, com contratação de serviços brasileiros. Há outros projetos, como os do eixo Mercosul/Chile, o do eixo Amazônico (beneficiando Colômbia, Peru e Equador) e o do eixo Guiânia.
O projeto de integração da Comunidade Sul-Americana tem "pilar político", como lembrou Amorim. Não poderia ser diferente. Porém, é a concentração em torno de projetos tangíveis de infra-estrutura (beneficiando a todos os parceiros) que inibe riscos ou pretensões de construção de hegemonia. Seja de quem for. O interesse brasileiro, bem transparente, é de projeção comercial e não de projeção de poder. O principal fator para manter apenas nos romances da literatura fantástica as aventuras demagógicas de "nuestro continente latinoamericano" é a geração de desenvolvimento econômico sustentável. Como mostra o exemplo europeu, da Espanha basca até a explosiva Irlanda, quando o desenvolvimento adquire capilaridade, migra do centro para a periferia do continente, não é só a miséria que diminui. Quando o atraso se despede pela integração continental, a violência política perde quase toda a sua razão de ser.
A nova ordem internacional dos grandes blocos econômicos não permite ingênuos descuidos ou inabaláveis crenças em eternas amizades hemisféricas. Talleyrand, que sobreviveu de Robespierre até Luiz XVIII, gostava de lembrar que as nações não têm amigos, apenas interesses. Esse é o ponto relevante. As nações sul-americanas têm notórios interesses comuns. Inclusive, ou especialmente, no momento da necessária negociação com a Alca. Negociações isoladas, caso a caso, como também lembrou o ministro Amorim, implicam ganhos de curto prazo, "mas a médio e longo não se ganha, se tem prejuízo". A diplomacia brasileira, cumprindo uma política de Estado, vem, há quase duas décadas, repetindo esse mote. Sem esmorecer. É um bom caminho. kicker: Porque nações não têm amigos, apenas interesses, é correto iniciar a integração latino-americana pela estrada para o Pacífico