Título: O SNI tinha até jornal em 1968.
Autor: Otto Filgueiras
Fonte: Gazeta Mercantil, 13/12/2004, Primeira Página, p. A-1

Entre outros cerceamentos da liberdade, o ato 5 acabou com a garantia de habeas corpus para presos políticos. O deputado Delfim Netto diz que depois da divulgação da ata da reunião do AI-5, "se tentou dar uma interpretação equivocada sobre o que eu disse, como se quisesse restabelecer a fogueira (da Inquisição), mas não era aquilo".

Segundo ele, no livro "A Ditadura Envergonhada", o jornalista Elio Gaspari "dá a interpretação correta", porque "eu dizia ser preciso dar instrumentos para fazer a reforma do Código Tributário, como nós fizemos, e dali para frente o Brasil foi embora, cresceu 9%, 10% durante dez anos".

Delfim Netto diz que nunca alterou os índices de inflação, quando foi ministro da Fazenda durante o regime militar, mas admitiu que colocava produtos alimentícios no mercado para regular preços. Hoje um crítico da política de juros altos do Banco Central, Delfim Netto diz que ela está provocando "um custo social enorme, porque exige da Fazenda elevação ainda maior do superávit primário". E afirma que a meta do Banco Central de 5,1% de inflação para 2005 "é um monstro produzido nas coxas e com masturbação aritmética". A seguir trechos da entrevista.

Gazeta Mercantil - O AI-5 está fazendo 36 anos e o senhor, como um dos signatários, não se sente responsável por ter ajudado a abrir as portas do inferno para a perseguição, prisão, tortura e morte dos opositores do regime militar?

Delfim Netto - Não tenho nenhum arrependimento sobre o AI-5 e se as condições fossem as mesmas eu assinaria de novo. E só não assinaria se conhecesse o futuro, se soubesse que aquilo ia degenerar como degenerou num processo extremamente desagradável, num processo de torturas. Nenhum projeto vale uma vida humana. Mas, quando se está num processo como aquele jamais podia imaginar que ia degenerar como degenerou, virou uma guerra. Houve uma guerra e nós vencemos, ponto final. Houve exageros? Houve. Houve torturas? Houve. Houve uma situação incivilizada por parte de todos. Mas é só olhar o projeto que eles da oposição queriam impor ao Brasil: era um bando de fanáticos, absolutamente ignorantes tentando transformar o Brasil numa grande Cuba. De forma que hoje, quando olho, fico "entusiasmado" como eles são os mais fervorosos neoliberais que estão aí circulando. Do ponto de vista das finanças nunca houve censura na imprensa em matéria de economia por causa do Ato 5 e desafio trazer alguém aqui para dizer que houve. E o processo se degenerou muito posteriormente, dois ou três anos depois, e houve uma guerra mesmo, não houve um simples embate, e morreu gente dos dois lados. Mas, nenhuma vida humana vale um movimento como esse. Se a gente soubesse ou se naquele instante tivesse a percepção que isso ia degenerar como degenerou nos anos de 1970, 1972, ou se tivesse a idéia de como o mundo estaria evoluindo, é muito simples, não só eu, mas muitos não teriam tomado aquela decisão naquele momento.

Gazeta Mercantil - No livro "A Ditadura Envergonhada", do Elio Gaspari, o senhor diz que "naquela época do AI-5 havia muita tensão, mas no fundo era tudo teatro. Era um teatro para levar ao ato. Aquela reunião foi pura encenação..."

De fato, cem mil pessoas na rua era o teatro, porque não tinha projeto, não tinha nada.

Gazeta Mercantil - Mas no livro do Gaspari o senhor crítica o marechal Arthur da Costa e Silva e afirma "que se preparava era uma ditadura mesmo. Tudo era feito para levar àquilo".

Existia dentro do governo duas correntes fortíssimas, uma queria o sistema muito mais duro, era a linha dura, a qual o presidente Costa e Silva se opôs totalmente, tanto que depois do ato 5 ele a liquidou. E tinham movimentos de ruas diários, cem mil pessoas na rua, para quê? Naquele momento a situação era delicada, o governo precisava ser governo e foi o que aconteceu.

Gazeta Mercantil - Na declaração de voto o senhor disse que estava "plenamente de acordo" com o AI-5, mas que "não era suficiente". E sugere "possibilidade de realizar certas mudanças constitucionais, que são absolutamente necessárias para que este país possa realizar o seu desenvolvimento com muita rapidez"...

E foram feitas, e depois das mudanças, principalmente no Código Tributário, o Brasil cresceu 9% ao ano, 10% ao ano durante 10 anos. Mas, quando foi publicada a ata da reunião do AI-5, se tentou dar uma interpretação equivocada ao que eu disse na reunião, e o Gaspari dá a interpretação correta. As pessoas imaginavam que eu queria restabelecer a fogueira (da Inquisição), mas não era aquilo. Eu dizia que era preciso dar instrumentos para fazer a reforma do Código Tributário, como nós fizemos, teve a reforma tributária que foi feita antes, e dali para frente o Brasil foi embora. Hoje, como não se consegue enxergar aqueles momentos, os problemas são vistos de maneira diferente. E o AI-5 devia ter terminado mais cedo e só não terminou porque houve uma infelicidade. Poucos dias antes de ter aquele derrame, o Costa e Silva me disse "professor Delfim, eu vou promulgar a Constituição no dia 7 de setembro". Ele ia restabelecer o processo democrático, mas ele teve o derrame e morreu. E ninguém esperava que aquilo fosse durar o que durou, muito menos quando se fez o AI-5.

Gazeta Mercantil - Mas entre outros cerceamentos da liberdade, o AI-5 acabou com o habeas corpus para pessoas presas por motivos políticos...

Mas era evidente, o ato era para isso, era para impedir esses movimentos políticos. Mas o ato não tinha nada que dissesse que ia durar 20 anos, e durou pelas circunstâncias históricas.

Gazeta Mercantil - Recentemente o senhor falou que é preciso "retomar o espírito do desenvolvimento que houve na década de 1970", durante a ditadura, e disse ser possível fazer isso"sem regime militar, mas com democracia". O senhor acha mesmo que isso é possível?

É evidente, porque o desenvolvimento econômico é um estado de espírito. Desenvolvimento econômico acontece quando tem um governo que é relativamente amigável à atividade privada, que dá proteção ao funcionamento da atividade privada, que protege a propriedade privada, que permite aos agentes apropriarem-se dos ganhos das suas atividades e que desperta o espírito animal do empresário. Quem produz o crescimento é o empresário, e assim como não existe crescimento sem empresário, não existe empresário sem Estado para protegê-lo.

Gazeta Mercantil - Se aquele modelo econômico era tão bom, por que precisava de ditadura?

Mas quem é que disse que era preciso a ditadura? A ditadura não tem nada que ver com isso. O regime militar aconteceu por motivos políticos, não aconteceu por um tipo de contestação, o que era até natural, e que iria se explicitar na eleição direta seguinte, se o Costa e Silva tivesse vivido. Infelizmente não aconteceu assim, e aí foi degenerando, teve o regime tripartite (a Junta Militar) e os movimentos armados, a contestação armada e foi piorando.

Gazeta Mercantil - E o regime militar veio por quê?

O regime militar veio porque o João Goulart fugiu, abandonou o país, destruiu as estruturas desse país por tibieza. E foi derrubado por um golpe em que a rua se manifestou. No dia seguinte ao da queda do João Goulart teve uma passeata de um milhão de pessoas.

Gazeta Mercantil - Mas, a partir de 1966, houve uma revolta estudantil e greves operárias contra o regime militar...

Acho que sim. Na verdade, essa é a origem menor para o AI-5, porque tinha uma contestação dentro do governo do grupo da tal linha dura desejando uma coisa parecida com os comunistas, só que não sabia o que era. E o governo se defendeu dele, de forma que o Ato 5 serviu para defenestrar o grupo da linha dura e também para defenestrar essa oposição externa que existia. Aquilo foi um instante de uma grande infelicidade, não tinha nenhuma necessidade de acontecer.

Gazeta Mercantil - É importante, hoje, a abertura dos arquivos do período militar?

Acho que sim, não há razão nenhuma para que não se abram os arquivos e para que não se permitam às pessoas conhecerem tudo. Não há razão para esconder nada. O regime militar é um processo histórico que rodou por conta própria e produzindo os efeitos perniciosos que produziu. E a tortura, na verdade, é um fator de dissolução do torturador, que é mais fraco que o torturado.

Gazeta Mercantil - É verdade que o senhor alterou os índices para diminuir a inflação, quando foi ministro da Fazenda durante o regime militar?

Isso é uma das coisas mais tolas que falam sobre mim.

Gazeta Mercantil - No livro do Elio Gaspari há reclamações do próprio general Ernesto Geisel contra o senhor em relação a isso...

O Geisel não se distingue por genialidade. E se ele disse isso, não sei se disse, está errado e por uma razão muito simples: a Fundação Getulio Vargas (FGV) era controlada pelo Doutor Octávio Gôuveia de Bulhões e só um idiota é que pode pensar que eu podia chegar para ele e dizer: "Doutor Velhinho vamos dar uma arrumada nisso?" Já expliquei 25 vezes, vou explicar a 26 vez. As três da manhã nós tínhamos gente em Curitiba, em Belo Horizonte, em São Paulo, e como se calculava o índice só no Rio de Janeiro, esses nossos agentes estavam esperando, e as quatro da manhã eu recebia um telefonema deles: "olha, a chuva foi muito pesada, vai faltar verduras". E eu mandava transferir rápido e em cinco horas chegava verdura e outros produtos que iam faltar, e assim se equilibrava a oferta, e seguia isso. Mas isso exige trabalho e não é possível fazer com essa gente que se acostumou a chegar às dez horas no escritório e ser surpreendida.

Gazeta Mercantil - O senhor colocava o feijão, arroz, verdura no mercado na hora que a FGV coletava os preços?

Normalmente não. Os preços eram coletados toda semana, todo dia. Essa é uma prática correta. Depois tem toda uma justificativa para entender isso. Por que os quatro índices são todos iguais, praticamente 12, 13, 15%? Por quê? Como era possível controlar os três ou quatro? É impossível.

Gazeta Mercantil - Qual a questão central na economia brasileira hoje: o problema dos juros altos ou do real valorizado?

O nosso câmbio cometeu erros monumentais e tivemos cinco congelamentos de câmbio até o governo de Fernando Henrique Cardoso, e isso, na verdade, desmontou o setor exportador, que é o mais dinâmico da economia brasileira. O Brasil exportava numa velocidade muito maior que a do mundo, por isso é que crescia mais do que o mundo. O Brasil se estuporou a partir de 1984, quando abandonou a exportação. Então, por que de 1984 até 2004 a exportação brasileira subiu 200% e a chinesa subiu 2000%? Por que o chinês era mais bonito, por que tinha o olho puxadinho, ou por que os americanos gostavam mais dos chineses? Não. E sim porque o chinês manteve a sua taxa de câmbio subvalorizada a vida inteira.

Gazeta Mercantil - O Banco Central resolve o problema comprando dólares?

O Banco Central não tem condições de fazer nada e, na verdade, é irrelevante para o problema brasileiro. Tanto é verdade que o Brasil cresce contra a vontade do Banco Central. Eu me divirto quando vejo o Meirelles (Henrique Meirelles, presidente do BC) dizer: "Isso é graças a nossa política". Que política? Ele acredita que o Brasil não pode crescer mais que 3,5%, acredita que o Brasil não pode ter taxas de inflação maiores do que 10% ao ano.

Gazeta Mercantil - Se o senhor fosse ministro o que faria agora?

Existem múltiplas formas. Está aí o México operando, a Ásia inteira operando com taxas de câmbio desvalorizado. E o Brasil não está prestando atenção. Claro que existe uma desvalorização do dólar, mas isso é irrelevante. O que é relevante é a relação entre o real e as moedas dos nossos competidores, porque competimos com o chinês, competimos com taiuanês, com coreano, e não com americano. Portanto, o nosso câmbio ou acompanha o deles, ou até é um pouco melhor, porque eles têm uma taxa de juros de 2% e a taxa de juros real freqüentemente é negativa, enquanto nós temos no Brasil a maior taxa de juros do mundo.

Gazeta Mercantil - A política monetarista do governo Lula e do Banco Central pode atrapalhar a retomada do crescimento?

Eu não chamaria isso de política monetarista, fica dando até um status, porque, na verdade, o Banco Central não acredita que o Brasil possa crescer mais do que 3,5% sem sofrer graves tensões inflacionárias. Mas está crescendo 5% e sem tensão inflacionária. E o que vai ter um custo enorme é a brincadeira com o câmbio, porque está ajudando a combater a inflação no curto prazo, mas vai voltar como uma vingança, pois o ritmo do crescimento da exportação já está se reduzindo. A irrelevância do Banco Central é a estimativa das metas inflacionárias ambiciosas. Por que temos que voltar a 3,5% de crescimento em 2005, que é o desejo do Banco Central, para atingir 5,1% de inflação? E por que 6,5% não serve? De onde saiu os 5,1%? Não serve porque a meta da inflação é composta de duas coisas: 4,5% foi construído num modelo de joelho, foi em cima das coxas e 0,6% foi construído, na verdade, por um processo de masturbação aritmética. Então, a meta de 5,1% de inflação é um monstro produzido nas coxas e com masturbação aritmética.