Título: A comunicação audiovisual
Autor: Orlando Senna
Fonte: Gazeta Mercantil, 14/12/2004, Opinião, p. A-3

No alvorecer do século passado, um acontecimento tecnológico foi percebido como suficientemente impactante para mudar a vida das pessoas. Uma percepção instantânea por parte das cabeças pensantes da época, dos governos, das corporações econômicas e das organizações científicas, que logo trataram de adaptar seus mecanismos de convivência à nova era. O acontecimento foi a eletricidade, ou melhor, a capacidade tecnológica de produzir, controlar e distribuir esse fenômeno natural, direcionando-o para a produção de bens e para o aumento da qualidade de vida. O epicentro dessa percepção foi a Exposição Universal de Paris, em 1900, quando a então capital do mundo foi iluminada pela energia elétrica (a Cidade Luz). A Exposição Universal antecipava a evolução vertiginosa dos transportes, da comunicação, da conservação de alimentos, da fabricação em série de bens de consumo e do lazer. Renoir e outros pintores impressionistas pressentiram uma nova estética a partir da nova luz, do dia artificial. O cinema e o avião tornaram-se possíveis, e grandes polêmicas de fundo filosófico e social foram travadas. A principal delas referia-se às patentes, quando Pierre e Marie Curie, descobridores do polônio, do rádio e da radioatividade, negaram-se a patentear seus inventos, defendendo a idéia de que os inventos e as descobertas científicas são um bem de toda a humanidade (Santos Dumont, um dos defensores dessa posição, não patenteou seus inventos, incluindo o avião, que foi registrado em nome dos irmãos Wright). A consciência da necessidade de novas regras marcou os primeiros tempos da revolução elétrica. Dirigentes nacionais e lideranças empresariais trataram de superar a colisão de interesses em nome da necessidade imperiosa de demarcar campos de atuação e regras de convivência para a utilização da nova e transformadora tecnologia, ordenamento que permitiu sua evolução e os resultados de bem-estar que hoje desfrutamos. Neste alvorecer do século 21 vivemos uma situação semelhante com a revolução tecnológica da comunicação audiovisual. A expansão geométrica dessa comunicação por todo o planeta (televisão digital, redes informáticas, satélites, telefonia celular), suas estonteantes ferramentas de criação artística (infografia, interatividade, realidade virtual), sua enorme importância no progresso científico e educacional e a incidência desse quadro nos costumes, comportamentos, crenças e valores morais dão uma medida do que está por vir. Se acrescentamos essa incidência na relação das distintas culturas da humanidade consigo mesmas e com as outras, nos direitos de cidadania, nas soberanias nacionais e o fato de que a comunicação audiovisual será o maior pólo econômico das próximas décadas, o quadro estará quase completo. Quase porque é sempre impossível prever todos os desdobramentos das revoluções - em 1900 previram muitos resultados da eletricidade, mas não imaginaram impactos culturais como o rock, a viagem à Lua e, para não sair do nosso assunto, a televisão de bolso. Vivemos uma situação semelhante à de 1900, com a diferença de que não está ocorrendo uma percepção tão generalizada da dimensão dos câmbios que vamos viver. Mas muitas pessoas, incluindo todas que detêm algum tipo de poder, têm perfeita consciência da nova qualidade de economia e de relação humana que está eclodindo e tratam de inserir seus interesses pessoais, da melhor maneira possível, nessa nova ordem. Bem no espírito de alta competitividade e violência da nossa atual civilização (tão distante dos românticos humanistas Curie e Santos Dumont), vários níveis de disputa são travados pelo bolo de poder e riqueza que está sendo gerado. Os vários níveis da disputa conformam um cenário caótico, onde a evidente necessidade de um novo tipo de arbitragem (novo porque se trata de um jogo novo) está sendo escamoteada e prorrogada para que a ausência de leis facilite a maior ocupação de território possível pelos que tiverem maior poder de fogo. Mas esse jogo inclui todos os que pagam impostos, todos os cidadãos e seus direitos sociais, seu direito de acesso aos bens culturais, o direito cidadão de usufruir dos avanços tecnológicos. E também o direito de empresas e capitais de jogarem com regras claras e definidas, como é de praxe em todas as economias formais. A arbitragem do Estado na selva da atividade audiovisual, adotada por todos os países centrais e em curso em todos os países emergentes, é a razão e a essência da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav) que está sendo construída pelo governo, pelo setor e pela sociedade. No que diz respeito à força cultural e poder de convencimento do audiovisual, uma arbitragem sustentada em normas preestabelecidas, em regras claras, é o único procedimento que pode impedir a dominação de uma cultura por outra e a perversidade das hegemonias. kicker: A necessidade de novas regras marcou os primeiros tempos da eletricidade