Título: Um avanço a favor do mercado interno
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Fonte: Gazeta Mercantil, 17/12/2004, Opinião, p. A-3
Essa primeira palavra-frase do imortal romance "Grande Sertão: Veredas", de João Guimarães Rosa, expressa à perfeição o sentido do anúncio feito anteontem pelo governo de reajuste do salário mínimo para R$ 300 a partir de 1 de maio do próximo ano e da correção da tabela do Imposto de Renda (IR) para pessoas físicas. Para usar o título de uma peça de William Shakespeare, é um caso de "muito barulho por nada", tendo em vista a histórica injustiça social da sociedade brasileira. Apesar de insignificantes, entretanto, faça-se justiça, essas duas medidas representam um avanço em relação às políticas postas em prática nos últimos dez anos.
As decisões tomadas pelo governo federal procuraram fazer um afago nos movimentos sindicais, que exigiam as duas medidas, embora um pouco mais ousadas. Um esforço para recuperar a imagem do presidente-operário, que se desgastara nos dois últimos anos ao conceder pequenos aumentos ao salário mínimo, ante promessas de campanha de dobrar seu valor. Pelo menos, agora, o governo ultrapassa a meta de um salário mínimo de US$ 100,00 ¿ ainda que o real esteja sobrevalorizado.
Um cálculo realizado no ano passado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese) mostrava que, para dobrar o valor do salário mínimo ¿ na ocasião de R$ 240,00 ¿ até o final do governo Lula, seria necessário dar aumentos reais de 26% ao ano, caso a inflação fosse zero. Para uma taxa de inflação de 6% ao ano, o salário mínimo neste ano deveria ser de R$ 320,52; em 2005, de R$ 428,06; e em 2006, de R$ 571,69.
Já a correção de 10% na tabela do IR, representa na prática, aproximadamente, a absorção do bônus de R$ 100,00 concedido neste ano entre agosto e dezembro, incluindo o 13º salário, para os assalariados, e sua extensão a outros contribuintes. Com isso, o contribuinte deixará de recolher aos cofres públicos valores que variam de R$ 15,00, na faixa de renda líquida mensal tributável de R$ 1.163,80, a R$ 42,52 na de renda de R$ 10 mil. Na primeira faixa, esse valor daria para comprar 75 pãezinhos de 50 gramas por mês, ou 2,5 por dia, considerando um preço médio de R$ 0,20 por unidade. Já na outra faixa, permitiria a compra de 7 pãezinhos por dia, o que daria menos de duas unidades por pessoa numa família de um casal e dois filhos.
Para o governo, que alega abrir mão de receita de R$ 2 bilhões, é muito. Para o contribuinte, é uma migalha. Mas como dizia Guimarães Rosa naquele mesmo romance: "Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães..."
Além disso, há uma defasagem de 63,1% na tabela do IR desde 1996, quando ela foi corrigida, pela última vez, pelo índice oficial de inflação, ou seja o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Desse porcentual já está descontada a correção de 17,5% concedida em 2002, por motivos eleitorais, pelo governo Fernando Henrique Cardoso. Com a correção de 10% a partir de 1º de janeiro de 2005, ainda assim seria necessário um ajuste adicional de 49% para a tabela chegar aos níveis de 1966.
Estudo realizado pelo Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Unafisco) mostra que, com a eliminação do reajuste anual da tabela, o Leão terá se apropriado de R$ 36,9 bilhões dos contribuintes, de 1997 até o dia 31 de dezembro deste ano. Esse total representa mais de 18 vezes a perda de arrecadação que o governo alega que terá no próximo ano.
O Ministério da Fazenda argumenta que a correção anual da tabela pelo IPCA equivaleria à volta da indexação, o que não é desejável. No entanto, o governo tem permitido a correção, pela inflação, dos contratos de telefonia e de energia elétrica, entre outros. Com isso, os preços administrados têm sido os principais focos de inflação.
Há, entretanto, fatores positivos nas medidas anunciadas, como o aumento da renda das camadas mais baixas da população, o que deve estimular o crescimento da economia, como ocorreu no início dos planos Cruzado e Real. Isso porque existem no País entre 30 milhões e 40 milhões de brasileiros com renda vinculada ao salário mínimo, além de cerca de 15 milhões de aposentados e pensionistas da Previdência Social que recebem um mínimo. O impacto maior deve ocorrer no Nordeste, onde 56% dos trabalhadores ocupados ganham até um mínimo e, além disso, as aposentadorias muitas vezes constituem a única fonte de renda de muitas famílias em cidades do interior.
Se o governo finalmente continuar com a política de recuperar o valor do salário mínimo e promover a justiça fiscal para os assalariados, que são os grandes responsáveis pelo pagamento do IR na fonte, é possível que o mercado interno se expanda, garantindo o crescimento sustentado da economia. kicker: Estudo da Unafisco mostra que, com a eliminação do reajuste anual da tabela do IR, o Leão terá se apropriado de R$ 36,9 bilhões